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18.2.15

Resenha - livro "Oliveiras Blues" (Akira Yamasaki)






Oliveiras Blues - A alquimia poética de Akira Yamasaki

oh pássaro breve
leve-me leve

A Poesia é, das expressões da Arte, talvez a que melhor traduza a sensorialização do bicho humano diante das coisas do mundo e da vida. Pela sua própria forma de exteriorização (a escrita e a audição), a Poesia requer instrumentos específicos de emissão e recepção para que se manifeste. A boca, a mão, o ouvido (logo, a fala, o gesto e a interpretação), fazem dessa arte a tradução da vida. Se um dia for extinta a força que impulsiona o ser vivente à criação e fruição do êxtase artístico, é porque a vida está encerrada aqui sobre essa camada. Impossível imaginar o homem sem o insight criador da Poesia, elã que o liga ao mistério que o diviniza.
O blues é quase um mantra, música cantada ao léu por negros escravizados nos campos de algodão em toda a vastidão do sul estadunidense, traz em sua melodia todos os exílios do homem. Tanto  lamento como evocação divina, o blues é exaltação da África natal, é memória de seus mitos, lendas, guerras e amores.
Ler, portanto, “Oliveiras Blues”, segundo livro de uma produção caudalosa de um poeta brasileiro descendente de japonês, nascido no interior de São Paulo e crescido nos rincões da periferia de Sampa, parece um desencontro geográfico que só a Arte pode corrigir. Akira Yamasaki, nesta obra que homenageia o bairro onde vive, reafirma e reforça o raciocínio que tento elaborar. Demiurgo poético cujo refinamento vem da contemplação transparente e da reflexão nua, ao Akira pouco importa do que é feita a pedra, pois o melhor de sua alquimia é burilar essa pedra de tal forma que ela vire qualquer coisa em sua linguagem, em seu instinto criador. Assim, um simples olhar de um boi condenado vira mote para um texto que nos embriaga:

nunca esqueço
uma cena de infância

uma volta da pescaria
uma curva na estrada
um boi amarrado
pelas patas e pescoço
em duas árvores
uma marreta

ainda hoje me assombra
o olho do boi

Uma reflexão materna ilustra todas o desmedido amor de todas as mães do mundo: “(...) esse é treze de pedra e não tem cura, de hoje em diante só vou amá-lo e seja o que deus quiser”.


Também há uma vontade incontrolável de versejar a amada e a ela oferecer tudo o que sua matéria-prima permitir:

fiquei do outro lado
da rua da sua casa
sob a garoa da saudade

ficou no meu coração
enterrado para sempre
o punhal do seu perfume”.

E, justificando o título, o filho dileto presta culto à terra onde fincou suas raízes, o Jardim das Oliveiras, no extremo leste da cidade de São Paulo:

bem que estranhei
o movimento incomum
nos últimos dias 
mas só hoje eu soube
pelo cara do churrasquinho
que fica na porta
da rainha do oliveiras

houve, alguns dias atrás
uma rebelião na fundação
coisa feia mesmo
só para constar
o diretor da instituição
ainda está na uteí

queima de colchões
queima da unidade
queima de arquivos
e uma pá de moleques
pá pá pá nas ruas

por mera coincidência
vi dedo mole de novo
adequado ao padrão fifa
tênis da mizuno
boné do neymar

Akira tem a peculiaridade de pegar a crônica mais vã, a mais prosaica visão do cotidiano e transformar, com toques sutis de poeta genial - que ele de fato é - a trama refinada que lembra a confecção de um tapete persa fino e raro. Este “Oliveiras Blues”, que poderia trazer o peso quase insustentável da musicalidade densa e etérea oriundas das fazendas ensolaradas do sul dos Estados Unidos, confunde, e traz o frescor da nota que não saiu na página policial do jornal. Traz o lirismo que desconcerta o leitor, a luz que destoa do cinza previsível da rotina. O brasileiríssimo poeta, descendente de orientais, que se dá ao luxo de abrir mão de régua e compasso na elaboração de suas composições, o generoso articulador cultural que mantém vários projetos de produção artística na região aonde mora, Akira Yamasaki, neste novo livro (o primeiro foi o já clássico “Bentevi, Itaim”, de 2012), proclama com clareza tão óbvia que até nos tonteia:

não adianta portos
navios e oceanos
se não há acenos
partidas e chegadas

Em tempo: “Oliveiras Blues” é um dos quatro títulos da série E.X.E.M.P.L.O.S., desenvolvida pela editora Lunna Guedes para a Scenarium Plural. Todos os livros dessa série foram feitos manualmente.

Texto Escobar Franelas
Fotos: arquivo pessoal AY

17.2.15

Um poemeu: "Confidência de drummondiano"


CONFIDÊNCIA DO DRUMMONDIANO

alguns anos vivi em itaguases
principalmente nasci em itaguases
por isso sou triste, orgulhoso: de ferro
noventa por cento de ferro nos músculos
oitenta por cento de ferro nos ossos

a vontade de amar, que me paralisa o trabalho
vem de Itaguases, suas noites brancas, suas mulheres e seus horizontes.

e o hábito de sofrer, que tanto me diverte
é doce herança itaguaiana

de itaguases trouxe prendas diversas que ofereço:
essa pedra, esse ferro, futuro aço de meus braços
este são benedito, este santo daime, esta Iemanjá
este couro untado de suor, estendido no sofá da sala aos domingos
esse orgulho de cabeça baixa

tive ouro, tive gado, tive fazendas
hoje sou funcionário público
itaguases é apenas uma fotografia na parede
mas como dói!


poema: Escobar Franelas (livremente baseado em Confidência de Itabirano, CDA)
foto: http://penseforadacaixa.com/wp-content/uploads/2013/04/Est%C3%A1tua-Carlos-Drummond.jpg 

10.2.15

Um poemeu: "Ave, Cézar!"



foto: arquivo feicibuquiano de Célia Maria Ribeiro

Ave, Cezar!

 Hoje pela manhã
No aconchego do lar
Estava em desassossego.
Como poderia estar bem
Se lá, depois da neblina
Dentro do Santa Marcelina
A dor mantém um refém?

Sem saber o que fazer
Me pus a compor versos
Pois esse é o meu terço
Minha maneira de rezar
O que me dá prazer
E faço em qualquer lugar.
Prazer igual, só o do sexo.

A caneta andando sem rumo
Desfilando no papel jornal
Coloquei a mente no prumo
Me peguei filosofando:
Vou tentar ser maioral
Quero ser bem igual
Esse tal de Cezar Baiano.

(Homenagem aos 55 anos de idade do bróder Cézar Baiano, que é uma estrela em algum lugar desse infinito)