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29.9.19

Um textículo: "exultação"


sua boca
de amora morango
de batom abóbora
de humor: curva em retângulo
crispada na pele escarlate
esquentando
emitindo o louvor da voz
prefaciando um olhar ciano
(cor de tarde quieta)

a tua boca

sua boca tem palmeiras
onde um canto a poemar

28.9.19

Um textículo: "à uilcon pereira, ou, eu, um vampiro de textos alheios"


Qual foi o maior medo que o senhor já enfrentou?
Não sei, mas sou basicamente um otimista.

Qual mundo eles enfrentarão quando forem adultos?
Uau, esta é um hora linda do dia, não?

A senhora falou em auto-análise... O que aconteceu com ela?
Porque sou eu. Minha história com o surfe é de curtição. Eu ensinei meus filhos a pegar onda. Até minha mulher pega onda. Tem vezes que conversamos coisas da família dentro da água.


(Poema criado a partir de perguntas e respostas diversas, em jornais e revistas, com variadas personalidades)

27.9.19

Um textículo: "glúcide, quase embriaguez"


Homem que ama
Cama
Mulher que ama
Chama
Velhos, quando se amam
Calma
Jovens, quando se amam
Clima
Mão que ama um filho
Close
Criança que ama um brinquedo
Cuidado
Cãos que se amam
Cruza
Pessoa que ama o dinheiro
Crédito
Gente que ama apanhar
Coitada
Carros que amam se encontrar
Cruzamento
Gente que ama rir de si
Crítica
Gente que ama rir dos outros
Cínica
Homem que amou o inimigo
Cristo

26.9.19

Um textículo: "eclesiastes c.1 v.1"


estranha essa vaidade de achar
que todo bom poema eu
poderia ter escrito

estranha essa vontade de escrever
o que é novo, quando tudo
já foi dito e está aí
é só catar no pomar de nuvens

mais estranho ainda é pensar
que posso pensar em algo inédito
quando essas linhas, aqui, se próprias
são plágios
dos desistentes que me precederam

25.9.19

Um textículo: "primavera em outono"


essa velha mesa curvada
em respeito aos versos
tantas vezes reescritos
um abajur aceso
folhas amarrotadas, uma delas vincada
por algum ontem
e esta outra, ainda inacabada
renascendo nas cócegas da caneta
os óculos debruçados sobre insultos
o frasco de perfume sem perfume
um cartão
livros acordados, outros que dormem e tantos
que perambulam de lembrança em lembrança
um diário!
a velha remington de teclas tristes
travadas
apagando-se

tudo como um sonho sépia
tripulado por uma luz
lua de 110 volts
em volta da sombra

23.9.19

Um textículo: "recitanto"


a mulher serve à vida
leva em seu ventre o zero
em sua primeira volta

o homem apenas carrega
uma acerola redonda
do tamanho de uma ameixa adulta
- que saco! -

o homem, meu deus, não serve pra nada!

22.9.19

Um textículo: "futuro passado a limpo"


escrever poesia mesmo
que com verbos regulares
escrever a vida
com seus versos irregulares

escrever escrever escrever

escrever, apagar trechos
esquecer, adicionar
reescrever

e mesmo após tantos rabiscos
passar passar
passar o futuro à frente
até que seja impossível continuar

20.9.19

Um textículo: "três"



essas ranhuras no rosto
e no resto do corpo:
martelo unhas
foices palavras

você me diz
- é que o marcelo se foi...

e um apontamento de dor
recolho na cor dos seus olhos


de, hardrockcorenroll, 1ª ed., 1998, SP

Um textículo: "se"


ai, meu deus, que sou impotente
incapaz de ser murilo beckett yeats
vinícius pessoa alphonsus

ai, meu deus, que sou um dado
geográfico, jogado no mundo
sou zé com endereço e rg
emprego num jornal e fome ao meio-dia

tenho uma caneta, um conflito
um papel, um vôo
- o que todos eles faziam ao meio-dia?
voavam?

às quatro da tarde vou passear no parque
- o que eles faziam 
às quatro da tarde?

ai, se eu fosse um poeta
se eu fosse
eu


(texto selecionado para a "Coletânea Poética da Biblioteca Vicente de Carvalho", 1999, Itaquera, SP, p. 24)

18.9.19

Um textículo: "maieuma"


é por ser asim
que as coisas se tornam
são
sempre assim:
nos plenilúnios da aurora
uma cor irrequieta
evanescente
que nasce
que recria
que cresce
alvorece enfim: é dia

e carrega consigo 
e traz consigo
todas as belezas
e todas as dúvidas
que desde sempre
herdamos: 

amém!


*texto selecionado para a antologia poética Leonardo - Meu Neto. RO: Ed. Opção 2. Seleção, organização e edição de Selmo Vasconcellos, 2004, p. 26

16.9.19

Um textículo: "segunda-feira"


tô oco por dentro
sem princípios
emotividade
inspiração
tô devasso
devastado

tô saudoso de ontem.
da terça da semana passada.

em, Antologia  Lauréis, 1990. SP: Scortecci, p. 88

15.9.19

14.9.19

Um textículo: "perguntas para normais"

o que se pode ser
quando se é diferente?
esse ser diferente passa onde?
rente?

normal é igual ao original?

a margem é marginal a quem?

(tantas respostas em
poucas perguntas)

13.9.19

Um textículo: "carochinha"


era uma vez uma historinha
era uma vez uma outra historinha
era uma outra vez uma historinha
era uma outra vez uma outra historinha

a princesa o monstro e o malfeitor
eram de mentirinha

a eternidade da luta entre
o bem e o mal
é verdadinha

12.9.19

Um textículo: "belchiorando - II"


e eu que fico aqui pensando nessas
coisas soltas no mundo
se o coletor fica triste, se não
se tem lixo pra recolher
se a guarda se chateia quando
não tem bandido para prender
se o repórter inventa notícia
sem mal para relatar
se a mulher se dissipa
por não ter filho para parir

e eu que fico aqui pensando nessas
pontas soltas da vida
qual delas dói mais, qual que é
a mais amortecida 
unidas - sabe-se lá - por tantos nós
que juntam
desatam
depois reatam
tanta tristeza embrutecida
e a leve alegria de outras pequenas
coisas acontecidas

11.9.19

Um textículo: "flerte - II"


o mar olha a nuvem
incenso auspicioso feito das águas
de suas entranhas
agora transformadas em sonhos

o céu contempla
o tapete sobre o cristal das águas
onde os pés da chuva irão pisar
quando descerem 

quando o olhar de um arrisca-se no outro
um riso rasga a boca do horizonte
e o grito abafado de tantos tuntuns
anuncia a graça que orvalha

9.9.19

Textículo nº 2 da série "micrônicas brasileiras"


- Vamos brincar de polícia e traficante?
- Vamos! Eu sou traficante poderosão. E tenho uma Hornet.
- Eu também sou traficante bem mala e tenho uma Ranger.
- E eu também quero ser traficante pra ter...
- Não! Você não pode, pois é café-com-leite. Vai ter que ser polícia.

7.9.19

Um textículo: "transe"


sempre para felizes foram
e assim disse que
histórias de contador velho 
um vez
uma era

"esse manto azul, roupa de deus
esse zeus colossal
de rosto flamejante
cara de sol maior que o sol
e cabelos brancos 
e de lágrimas pluviais
e caridade feita de calor e brisa
dessa voz que ecoa como trovão
e dez eus trabalhando dia e noite no céu
todos embrutecidos
ensimesmados
moldando o cetro dos eleitos
forjando o cajado dos mendicantes
a foice e a força 
do martelo dos proletários"

4.9.19

Um textículo: "veneração"


calorfrio do lado de dentro
desmedido do lado de fora
pele que queima
corpo que arrasta em desassossego
e deposita um exultante eu
extasiado eu
sacrificado eu
prostrado
a alma frita
desidratada, decomposta
diante desse deus embriagado e insone
o amor

2.9.19

Um textículo: "vendaval"

vento forte aqui
desses de arrancar as roupas
do varal interior

vento forte aqui
de quebrar estirante de pipa
solta na imaginação

vento forte aqui
de secar a roupa úmida
de lágrimas exteriores

Chip Somodevilla/ Getty Images