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31.10.19

Um textículo: "as intermitências entre céu e inferno"


o verso apaixonou-se pela palavra
mas ela, num descuido adolescente
não notou os olhos rabiscantes do outro
ignorou as mesuras do consorte
aliás
fez pior, comentou com a sílaba
das roupas coloridas deste
do excesso de verbos, o andar bambeante
sempre apressado.
e falou mais, que era feio, manco
deselegante

e o verso, desconsolado
sem saber o que fazer
sábado à noite foi ao baile da poesia
dançou com outras frases
beijou um advérbio inadvertidamente 
abraçou até adjetivo bêbado
fez amor com um sujeito oculto
não voltou para casa
nem viu o domingo acordar
pesado dentro de um bolso
cerrado dentro da bolsa 
manchado de batom 

EPÍLOGO
o fim? vive junto
não casou mas passa bem
está grávido

PS: era uma vez um final feliz

30.10.19

Um textículo: "rua"


em frente à loja
o senhor de olhos cansados
me aborda
oferece algodão doce
perto dali
o garotinho de olhos vivazes
me interrompe 
o senhor quer  um geladinho?

a jovem dona de casa, trufas
a velha dona de casa, cocada
a universitária, cocada
o imigrante, relógio

de jeová, as testemunhas
policiais
bandidos

abordagem diferentigual

e tudo que quero é paçoca ou tapioca
e água

29.10.19

Um textículo: "relação"


todo dia agradeço
por esbarrar em você, poema
todo dia me visto de versos
para você
desvisto do pior em mim
para que seu melhor entre
me inunde,
poema

você me torna terno e me me põe
pra dentro, nesse lugar de ser feliz
aquiaí


28.10.19

Um textículo: "anfitrião"


sempre convido o mar
para uma visitinha lá em casa
e ele, delicado, solene, vem
pede licença, espreguiça no quintal
e beija meus pés

todo dia planto árvores no cérebro
semeio, rego, adubo, irrigo
chamo pássaros
para pousar aqui, piar sobre a cabeça
para que se aninhem nos cabelos
e no pouso seguro, façam sons
façam cores, façam festa

a brisa nem precisa de convite
para dar umas voltas aqui
adolescente afoita que é
entra sem bater na porta
levanta a cortina, vaza pelos fundos
não sem antes distribuir carícias
dar beijos, sair
e voltar a qualquer hora

e o sol então? outro que nem convido
ele vem sem solenidades
quase todo dia, festivo, sorridente
e se encontra a porta fechada
entra por baixo, pela fechadura
abraça a parede toda,
faz afago com os braços pesados
sem cerimônias

a lua é outra presença constante
apesar da timidez, quase toda noite
aparece pro café, vinho ou jantar.
com os insistentes convites
para entrar em casa
só atravessa porta e janela entreabertas
e, tímida, não passa pelas cortinas
mas me traz mel e leite
faz afago e cafuné

dia desses fiz um caminho inverso
convidei a lâmpada lá de casa
para ir comigo a uma festa
e ela, "desculpe, seu escobar, mas não vou,
prefiro ficar aqui no meu canto"
depois, com polidez, pediu que eu levasse
a filha pela cidade
nesse passeio noturno

peguei a lanterna pela mão, saímos e
- surpresa! ciúme! -
a esguia vagalume - quem diria? -
chamaria a atenção onde circulou
despertava desejos dos faróis de todo lugar
e nos néons suspensos dentro da noite

desde então, intrigado e comovido
com a beleza desses olhares flamejantes
fico aqui pensando no que vou dizer
para minha comadre
que confiou-me sua herdeira
que esgotou a bateria
antes de chegar a manhã 
na cidade da noite sem fim 


27.10.19

Um textículo: "a segunda pessoa"


tendes medo da vanguarda do amor
mesmo assim és feliz
quando alcanças a plenitude
nalguns segundos dalguns minutos do dia
tendes a virtude da paciência do amor
mostras o ciúme tedioso do amor
os crimes hediondos do amor
morres de vontade de viver do amor
unges de sagrado o profano do amor
segues as luzes intermitentes do amor
danças os passos trágicos do amor
a paixão desesperada do amor
a rotina enfadonha do amor
os minutos subjacentes ao amor
cruzas os caminhos convergentes do amor
ouves música na respiração irregular do amor
saúdas o amanhecer do amor adormecido
sucumbes na água
no ar no fogo na magia na química
no desenho na poesia no humor
do amar

26.10.19

Um textículo: "ode aos últimos"


parabéns
todos vocês que herdaram as sextas à noite
o sábado à tarde
o domingos pela manhã
a cerveja com a turma
o filme por fazer
o filho por gerar
a lição por terminar
o balão a inflar
o jogador a se entregar
a ladrão a roubar
o padre a louvar
o patrão a receber
robin hood a oferecer
a emboscada a armadilha
o túnel o fim a fila
o pêndulo da sorte
a saúde dos fortes
o sinalizador da ilha deserta
a surdez para a palavra certa
o sono dos sonâmbulos
a soma de todos os ângulos
o desespero da espera
a esquizofrenia
a fome de todo dia
o crime e seu mandante
a venda pelo anunciante
a cruz, essa morte ao quadrado
as promessas de um velhaco

parabéns aos altruístas que se consomem
aos onanistas que se consumam
parabéns pelo primeiro lugar na fila
parabéns pelo primeiro de maio
parabéns pelo primeiro de abril

25.10.19

Um textículo: "ali lá"



ezra.
vou chamar seu pai
você pode fazer o que quiser
você quis entrar para o destacamento com seus amigos
fui eu?
que se dane esse país!
você não é meu filho
(um carro passou)
escute, não volte para casa
- tchau
(uma moto passou)
(uma bicicleta passou)
(um judeu passou)
(um táxi parou)
como está?
espero que chova bastante
o apartamento se torna uma piscina
que tenhamos um dilúvio!
também te quero.
as coisas não são assim.

(poema inédito, feito dadaisticamente - ou pelo menos pensado assim - a partir de um insight que tive assistindo o filme Alila, de Amos Gitai, em 2005. 
As legendas foram copiadas aleatoriamente, num esforço físico risível, pois eu não quis parar o mesmo para copiá-las  no papel. Apenas ia anotando o  que me era possível reter na memória. 
Não sei dizer se estão exatamente como na legendagem original).

23.10.19

Um textículo: "imanência poética ainda sem título"


que mundo é esse que procuro aqui?
que aves são essas que voam
- gravitando em torno, esses anjos?
que enigmas trazem os ventos frios
dos desertos quentes dos corações áridos?
que solidão é essa a do mar?
que mundo é esse que procuro
além de mim?

frases não ditas
como uma vida há muito
não escrita
mas lida agora
aqui

(retornos são bem-vindos)

21.10.19

Um textículo: "poema tirado de um conto de fadas"


se possível
convide para seu enredo
quem possa acordar no mesmo sonho
sem promessa de final feliz
ou lembranças de once upon a time

se possível
acorde os que pernoitam
em beijos pudicos da infância
e não dê tréguas às carruagens imaginárias
- carroças adornadas e mumificadas

há esse céu cinzazul
ares irrespiráveis
e um chão de cimento para pisar
pequenas compensações de viver
 a quem pena acordar 

desconfie dessas virgens que dizem ter dormido
os centenários sonos de maçãs
desconfie de cavaleiros e cavalheiros
e, principalmente, lembre-se que
a culpa nunca é do sapo
nem da bruxa








20.10.19

Um textículo: "todo dia nasce mulher"


todo dia nasce mulher
e nem criança é
nem varão nem escultura
todo dia nasce poesia
e o sol, com seus raios
de mulher, irradia
uma chuva prenhe de
sementes e sentimentos
toda poesia já nasce mulher
filha e mãe, em rudimentos
com seiva e sol
toda mulher nasce poesia
e desejá-la, e vivê-la
é o afã de todo dia

18.10.19

Um textículo: "de braços dados"


em 1981 escrevi meu primeiro poema
desde então
não escrevi para ter a namorada mais bonita
não escrevi para ter a namorada mais inteligente
não escrevi para ser um cidadão melhor
não escrevi para falar mal de guerra alguma
não escrevi para meu time de futebol
não escrevi em homenagem ao meu país
não escrevi para tentar entender o mundo
não escrevi para exaltar a caridade
não escrevi para exaltar a deus
não escrevi para laurear um herói

nada
nunca

apenas um dúvida me persegue
e com ela consigo


*este poema foi escrito há mais ou menos 25 anos, mas só ganhou este título - definitivo - quando a sugestão partiu de uma ouvinte que participava do sarau "arte-canal" (penha, sampalândia, sp), promovido pelo grupo de teatro experimental "alucinógeno dramático", de são miguel paulista

17.10.19

Um textículo: "lubricidade"


no abraço dos braços
o calor interior
dança do coração

no abraço das pernas
o calor inferior
dança do corpo em ação

16.10.19

Um textículo: "sobre o muro"


senhor, ensina o muro a repartir
o sol o vento o capim:
metade pro lado de lá
a outra metade do lado de cá
ensina os muros o calor
do mijo que molha as folhas daqui
do milho que brota nas terras dali
ensina o muro das mamonas
dos estilingues da rua de baixo
das vidraças das casas da rua de cima
do pega-pega do pega-vareta das bonecas
do pique-esconde do lado poente
das meninas da rua dos sol nascente
ensina os muros dos carrapichos
do prego enferrujado da horta forrada
da quermesse do circo do parquinho
a música
carnavais fogueiras missas 

ensina da insegurança
diante da flor "cor-de-rosa"
das primeiras provas
ensina esse gangorrear pra lá
e pra cá
explica essa divisão sobre a mansão
e o barracão

meu senhor, ensina o muro a somar
a multiplicar o jardim
os barrancos
essas vias sem fim

meu senhor, ensina o ruir o ruim
a não mais dividir
a não subtrair a diversão
a bênção, esse equilíbrio
das idades imaturas entre
a infância, a lembrança e o esquecimento

15.10.19

Um textículo: "sereia poeta e surfista"


com a mesma elegância que
desfilas no ritmo das águas
domas os dedos, a caneta
para escreveres com a quilha
- o verso da prancha -
sobre a solidão que dá asas aos pés
à imaginação, ao desregramento líquido
e nada sutil da poesia

deslizas, viras a folha
fazes o tubo perfeito
dropas na linha reta

no mar branco, monocromo 
de coloridos efêmeros
onde singra a liberdade
cara ao sol, cabelo ao vento
peito nu, braços abertos
reina essa certeza inexata
suspensa, virgem, surpresa

o bulício de todas as águas

14.10.19

Um textículo: "projeção"


talvez aquele poster na parede
diga mais que sua música
a foto na gaveta
fale mais que a memória

um sobretudo velho
a rosa murcha no vaso
filmes antigos
esse locutor com voz "pimenta com mel"

mas você insiste nesse
nessas fantasias amassadas
e rearrumadas
ultrapassadas pelo futuro

13.10.19

Um textículo: "sentença"


antes de ser papel e caneta
antes de ser word e teclado
antes de ser blogue
poesia é experiência diária
e - desnecessário dizer - necessária

11.10.19

Um textículo: "íntimo"


você que me lê agora
empresta o favor de seus olhos
o afago de seus dedos
o carinho de sua atenção
o calor de seu colo
e perdoa
esses escritos rudimentares
de um quiromante analfabeto
embriagado de vaidades
pra quem a poesia - esse palito de fósforo
aceso no nevoeiro -
nunca basta

10.10.19

Resenha - livro: "Veredas do Morená" (Gouveia de Hélias)


A mitologia é uma recorrência latente do paradoxo da tragédia humana diante da complexidade da afetividade amorosa. Observando o mito de Isolda e Tristão, vemos as bases que sustentam enredos como Julieta e Romeu, Ceci e Peri, Capitu e Bentinho, Diadorim e Riobaldo, e outras. Os conflitos gerados e geradores no jogo da conquista amorosa (junto com a sanha pelo poder e luta pela posse da terra), são o fio condutor de todas as relações nas sociedades ocidentais há séculos. O que chama a atenção é que estes dois últimos são, na maioria das vezes, obedientes à força maior do primeiro, o interesse sexual e sentimental.
O romance Veredas do Morená, do escritor cearense (radicado em São Paulo) Gouveia de Hélias, se insere nessa via lendária ao retratar o amor entre a índia kuikuro Kamiri e Aruã, da etnia kamayurá. Ambos se conhecem durante o cerimonial do Kuarup (ritual em homenagem aos ancestrais, celebrado por diversos grupos indígenas da região do Alto Xingu, noroeste brasileiro). O idílio tem seu início quando o casal adolescente prova pela primeira vez, o encontro pelo olhar, licor embriagante de homens e mulheres de todos os tempos e todas as sociedades. A trama tecida por Hélias nos provê com uma história fortemente reconhecível por quem já viveu os dilemas, agruras e benesses da experiência afetivo-amorosa. 
O que se coloca como antagonista, no entanto, é o fato do garoto não ter pai conhecido e ser portador de defeitos físicos, o que, na cultura tradicional de seu povo, seria uma condenação desde o nascimento. O sortilégio do menino foi que, desde a sua concepção, ele também foi muito amado pela família e a este fato se dá sua sobrevivência, que agora está em risco por conta dessa "maldição" que o persegue.
Todavia, o autor oferece mais que um bom drama. Sua obra vem costurada por uma apurada contextualização histórica, desde a chegada do homem português ao solo brasileiro em 1500. O texto também investe na pesquisa isenta para entender algumas práticas intrínsecas a determinadas culturas, como o infanticídio, determinante na construção do enredo. 
Outro dado refere-se às ilustrações fotográficas de Marlene Noronha, cujos recursos visuais criam uma "poética de cores", que complementa e equilibra o roteiro, uma tragédia à brasileira enquadradas graficamente na perspectiva preta-e-branca. 
Hélias, também autor de Dias Sem Compaixão (coletânea de artigos, crônicas e contos) e Os Sons do Adeus (uma robusta biografia romanceada do Padre Cícero), reafirma, através deste Veredas do Morená, a sua capacidade de colocar em igualdade os elementos documentais e históricos, contracenando com o objeto mitológico, derivado do saber ancestral e da experiência humana, fundamentada, acumulada e projetada pela linguagem da ficção.

Serviço
Livro: Veredas do Morená
Autor: Gouveia de Hélias
Gênero: Romance
Gênero Secundário: História
Edição: Chiado Books (2019, 1ª edição, Portugal)
Fotografias e revisão: Marlene Noronha
Editora: Vitória Scritori
Capa e composição: Marco Martins: Romance




texto Escobar Franelas
fotos Luka Magalhães





9.10.19

Um textículo: "poor-do-sol"


desce a tarde
mendigos disputam, sob a réstia de ouro
as sobras de ouro
nos sacos de lixo do restaurante

desde cedo essa sanha
sobreviver, pedir pra pagar um copo de ouro com leite
um ouro com manteiga
um prato de ouro na hora do almoço

desde cedo recolher ouro nas ruas
desfilar entre carros com seu ouro sarnento e magro
tomar ouro em algum cano quebrado 
lavar o ouro, a roupa, a tigela
na sarjeta

desce a madrugada
desde cedo, até a noite, caçar, ser caçado
desde cedo, até a morte
caçar, ser caçado
pela fome pela sede pelo frio
pela violência da indiferença

8.10.19

Um textículo: "zeusa"


zeusa inquieta, unhas coloridas
coçando dentro da derme
asas alvoroçadas voando fora do centro
agarradas às minhas
em falso pouso no ar

que alvoroço é esse?
rumor da imaginação?

zeusas não têm alma, não têm coração
voam, viajam no tempo, etéreas, atrasadas
fora do tempo, sem tempo

zeusas são de outro mundo
zeusas querem ser helenas
zeusas morrem de inveja de mortais

7.10.19

6.10.19

Um textículo: "divina devoção humana"


ave, maria
cheia de graxa, sua mão é
bendita sois vós entre as operárias
bendito o fruto de vosso trabalho

santa

maria trabalhadora
rogai por nós, agora
e na hora da vossa sorte além

e perdoai as nossas ofensas
assim como perdoamos
quem vos ofendeu

5.10.19

Um textículo: "veludos sonoros"


é com você que faço amor
todas as noites
e faço cócegas no ouvido
pelas ondas do seu aparelho
embora eu não a conheça
e você me desconheça
deitamo-nos abrimo-nos
e nossos gritos e vísceras
estão expostos nas inúmeras vezes
que visitamos o espelho
as casas dos amigos
os postais
as fotos na gaveta

é pra você que canto
todo esse cole porter
que o locutor nos ofertou
eu a amo, mesmo
com toda essa distância
esse espaço e essa ânsia
a nos preencher
e amo tão completamente
que a convido pra dançar
depois do êxtase
(amanhã jantaremos 
ouvindo juntos o j j jay, ok?)

4.10.19

Um textículo: "transeabundo"


as rococólias brumas dulcinéias
àssombradadas
fedram-me todas gothancitiando
cor cortázar
que quase borges-me todo
confesso: ando meio clariceando

é padrão nessa c_idade?

temo valéry um torquato
- um toquinho de vinícius -
no "slow west" no cinema iraniano
riobaldou-me em godot
macabeando macbeth
nas parras violetas sulamericaninas
ou nortenovaiorquinas, patti - quem sabe? -
caetanadas em campos e rochas

é isso:
óscares e césares dessa vida doce:
godardear felliniar coppolar
na arenágora
sob os mysterios gozosos
do cel

nas promessas inciais
ao sétimo dia, descansar-
se-ia

tudo todos vão

3.10.19

2.10.19

Um textículo: "zera reza"


quando quiser silêncio
feche
não tranque a porta
elas impedem a paisagem da quietude

ouça
o zumbido de pensamentos
trafegando no vácuo da memória
ruído nada engraxado
conservado no tonel
de minimalismo barroco

eis o grande concerto

impenetrável
o silêncio - você o sabe -
é vapor em suspensão
amigo sem comoção
música em composição

só as cores fazem mais barulho

1.10.19

Um textículo: "resignação"


posso
escrever por toda noite
toda cor todo corpo
em tudo, na vida
ou na ficção

ainda assim você
abundará nas entrelinhas

e o final
vindará o mesmo