Partindo de um pressuposto polêmico, mas defendido com pertinência e
argumentado com rigor, (...)Em Bilac,
toda nudez será exaltada. Em Nelson, toda nudez será castigada. O primeiro tem
a virgem e quer a puta; o segundo tem a puta e quer a virgem.(...) (p.20) José
Antônio de Souza traça em “Um demônio que ruge e um deus que chora – presença
de Bilac em Nelson
Rodrigues” sutis recortes analógicos às obras do mestre
parnasiano e do Anjo Pornográfico, Olavo Bilac e Nélson Rodrigues,
respectivamente. Para Souza, ensaísta, mas também reconhecido como talentoso
dramaturgo (Crimes Delicados, entre
outros trabalhos), roteirista de tv (Grande
Sertão: Veredas, por exemplo) e cinema (Reflexões
de Um Liquidificador é sua autoria mais recente), Souza aqui nos apresenta
outra faceta pouco conhecida de seu repertório: leitor voraz e crítico
intuitivo, ajuda-nos a ver (e compreender) a inusitada aproximação do desbocado
Nelson com o lírico Bilac.
Poeta mais exaltado da literatura brasileira no século 19, e que
sobrevive naturalmente, sem os ruídos histriônicos dos acadêmicos ou da mídia
obtusa, até esse início de século 21, Bilac foi, na feliz interpretação de
Souza, um precursor, ou antes, predecessor, da obra teatral mais contundente do
século 20. A
leitura que o debochado Nélson fez do parnasiano Olavo, de versos elaborados com
sutileza
(...) O Amor, botão
apenas entreaberto,
Ilumina o degredo e
perfuma o deserto. (...) (p. 23)
permitiu que surgisse em seu teatro efeitos poéticos de mesma lavra e procedência,
conforme nos convence o autor, citando a peça Senhora do Afogados (1981):
(...)Noivo (...) Ah, se
tu visses os ventos ajoelhados diante da ilha! (...) (p. 51)
Chamado pelo ensaísta de Anjo Tutelar, Bilac sorvia vorazmente a taça
lírica da morte, do tempo, da solidão e – também – do amor. Disso tudo, mas
também bebendo nas fontes de Augusto dos Anjos e Fiodor Dostoievski, Rodrigues
– o Anjo Exterminador, segundo Souza – vivia sua “angústia sem nome”, seu
patetismo adolescente, a dor aguda de ter presenciado a morte estúpida do
próprio irmão (1929), a morte lenta do pai meses depois, os embaraços
financeiros nos quais a família envolveu-se na década seguinte. Daí que sua
pena alvoroçou-se em fina ironia.
Não por acaso, Souza enumera
“(...) Ele não falou de
Bilac (...) eu quase diria que ele foi Bilac numa 2ª edição teatral, na
transposição da poesia do verso para a poesia do palco. Eu exagero? Pode ser
que sim, pode ser que não, pode ser que talvez.”(...) (p. 154)
Longe de serem distantes ou opostos, a obra elucida todos os pontos que
complementam um ao outro. E pondera que em ambos pontificavam as mesmas
paixões: amor desmedido à pátria.
Sintetiza, por fim, fazendo uso adequado dos versos de Bilac:
“Não és bom, nem és
mau: és triste e humano. (...) Um demônio que ruge e um deus que chora.”
(p. 167)
“Um demônio que ruge e um deus que chora – presença de Bilac em Nelson Rodrigues”
é, portanto, uma pepita de valor inestimável na leitura do work in progress da literatura e dramaturgia brasileiras, a partir
do último quarto de século XIX até o presente momento. Pois a influência de
ambos permanece. E José Antonio de Souza nos dá conta dessa proximidade, com
clareza e familiaridade, discernimento possível somente àqueles que sabem do
que falam. Ou do que escrevem. Souza sabe.
Um demonio que ruge e
um deus que chora – presença de Bilac em Nelson Rodrigues, José Antônio de Souza. SP: Giostri, 2011, 1ª edição. ISBN:
978-85-60157-61-7
(Rodrigues, N. Senhora
dos Afogados. Teatro Completo. SP: Nova Alexandria, 1981)
* Mais sobre o autor: http://www.imdb.com/name/nm0211789/?ref_=fn_al_nm_1
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