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30.10.12

CD de estreia da banda Tourrets (SP)


Formada por Arthur Chinaglia (guitarra e backing vocals), Johnny Gomes (baixo e leading vocals) e Rafael Suzuki (bateria e backing vocals), o trio de hard rock paulistano Tourrets traz em seu EP homônimo, recém-lançado, um acerto de contas sonoro com as influências, que faz uma linha do tempo com as bandas que preconizaram a cena rock no Brasil na década de 1980. Quero dizer, a banda não inova, mas renova a sensação de viver o espírito do rock como êxtase musical, atitude comportamental e pulsão juvenil.
Bonito, bem diagramado, todo composto entre o sépia e o preto-e-branco básico, o disco revela ainda a surpresa de ter sido muito bem produzido. Uma a uma, as músicas vão desfilando elegantes para os ouvidos
“Palavra”, a primeira música do EP, é uma colcha adornada de belas costuras musicais. Iniciada como um mantra sutil de cordas e ritmos, segue num “crescendo” que no fim reflui novamente, sem perda da coesão, enquanto diversas vocalizações constroem uma poderosa parede de grossas camadas sonoras.
“Sangue nos Olhos”, a segunda, diz tudo já no título. A introdução é uma porta aberta para a pancadaria sonora que se desdobra em um veemente discurso gutural, com muita vitamina musical e pouco espaço para a inocência adolescente. Relembra as grandes bandas híbridas do punk rock da década de 1980, como Plebe Rude. “Outro Lugar” é de uma sonoridade instigante. Com uma textura sutil, traz no seu bojo um discurso “meio Renato Russo” sob uma base limpa em que cada instrumento destaca-se por si, sem prejuízo do conjunto, num resultado muito bom, principalmente se levarmos em conta que estamos ouvindo uma banda iniciante e independente.
“A Sua Alma” é candidata a hit imediato. Impressiona, pois reúne em seu caldo sonoro uma base pulsante ao mesmo tempo que “adocicada”, dessas de ouvir e ficar assobiando o restante do dia. Música com aura própria e personalidade marcante. “Ego” é um discurso forte e violento (“Fortuna é o seu poder / Mas com o suor de quem?”), construído novamente sobre uma usina de sons dispostos em fúria, mas plenamente audíveis.
“Trincheira”, última música deste mini-disco gigante, tem um pouco de Racionais ou O Rappa. Os garotos entendem a necessidade de expulsar os demônios que permeiam a vida atribulada na cidade grande. Entram de sola naquilo que acreditam, esperneiam, gritam, mas não desafinam nunca: “Estou cansado da trincheira / Já aposentei o meu fuzil / Meu capacete é uma peneira / Não tenho perna pra fugir”.
Ficar colocando Tourrets em confronto com alguns ícones do roquenrol brazuca aqui é elogio. O terceto paulistano trafega com honestidade, talento, coerência e qualidade ímpares nessa revolta sincera em diálogo permanente com o modus vivendi que se oferece nas metrópoles do século XXI.
E revelam aí uma constante de todas as banda citadas: escrevem e tocam com competência, sem perder a atitude, causa e efeito primordiais do rock, desde sempre.
Mais informações sobre a banda e o cd: www.tourrets.com.br
Videoclipe de “palavra” em https://www.youtube.com/watch?v=HaNFhfqMX4s

Texto de Escobar Franelas / fotos Arquivo Pessoal Tourrets

28.10.12

Maria Dumário - "eNTRE vISTAS"



Após incessantes tentativas de entrevistar a ficcionista Maria Dumário, o Poeta radicalizou e convidou o Zeh, seu principal personagem, para uma conversa fiada. Como todo bom poeta que gosta de uma boa prosa, entre vistas a todas as possibilidades, saiu esse rascunho:

Poeta – Você é o protagonista de “Z vs. A”. Como foi que tudo nasceu, se é que você sabe dessa história?!
Zeh – Poucos sabem, mas na verdade eu nasci “A”. Não ria, essa ordenação foi muito natural, mas como a exigência é pelo cultural, então, houve um desmembramento racional, no qual eu fui levado para o fim, para poder tornar-se uma rima perfeita.

P – E como você reagiu a isso? Essa imposição gramatical implicou em sua forma de ver a vida?
Z – Sim, com certeza. Uma coisa é ver a vida com o olho da testa, outra coisa é ver a “coisa” com esse olho coisado, coisificado, codificado para ver as coisas a partir do fundo, pela parte de trás. Não ria, por favor, pois o assunto é sério. A Maria, com certeza, não previu isso tudo quando me pariu, afinal, personagem, ao contrário da criança natural, se rebela mais cedo. A minha adolescência deu-se na terceira linha. E reconheço que não fui um filho fácil não!

P – E como foi o relacionamento com sua mãe?
Z – Minha mãe na ficção ou na vida virtual?

P – A que o criou.
Z – Como você não respondeu corretamente à minha pergunta, vou responder do meu jeito. Mãe, antes de tudo, é aquela que cria. Pô, você vai rir? Tá bom, tá bom, mas que fique bem claro, "mão" - mão, viu? - realmente é aquela que cria. Não basta botar o filho no mundo. É preciso dar carinho, roupa, brinquedo no Natal, teta na hora certa, presente no dia certo, fazer dormir na hora certa. E também educação na medida certa. Só que minha mãe tinha muitos afazeres a fazer com suas duas mãos, uma hora era prosa, outra poesia. E aí, já viu, né? Deu no que deu. Acabei criado quase só, ela dedicava-se a múltiplas tarefas e acabei por tomar corpo sozinho. Quando ela colocou o ponto final no “Z”, eu já era um Zeh criado, com barba e bigode.

P – Sinto uma certa dor, um rancor nas suas ponderações...
Z – ´magina! Minha mãe foi maravilhosa. Apesar da solidão de minhas brincadeiras, apenas do quarto branco, da sala branca, da cozinha branca, das poucas amizades, ainda assim fui muito feliz, mesmo com uma mão ausente que me afagasse, me apoquentasse... Pois assim ela revelava-se também um pai para mim, e me enchia de nuvens, metáforas, eufemismos, aliterações, prosopopéias e brinquedos com os quais me divertia à beça. O que fiz mais engraçado foi uma série de onomatopéias.

P – Mas você não sentia falta de um primo, um carrossel, uma pipa, televisão?
Z – Eu não sabia que isso tudo existia. Melhor, até sabia que havia um outro lugar, que parecia o paraíso, quando o livro ficasse pronto eu iria pra lá. Mas fui educado de uma forma agnóstica, então isso não se materializava em mim. Isso tudo parecia um sonho distante. E eu me diverti muito nos jardins com flores de letras, nas lombadas dos livros, no esconde-esconde das folhas, no escorregador da caneta. Enfim, fui feliz do jeito que eu conhecia a felicidade. Depois surgiram outras...

P – E a música, como ela chegou em sua vida? Na sua juventude você gostava de dançar?
Z – Se você observar meu registro de nascimento, vai ver que já nasci numa dança: “Naquela manhã Zeh nasceu. Era pra ser A ou Agá, era pra ter nascido à noite. Mas a dor dura, a anestesia mal aplicada, o parto difícil, só nos primeiros raios de sol puderam surpreender os olhos semicerrados e ainda turvos de Zeh.” Isso é música pura, dança intensa, baile dos bons. Nasci música, pura poesia. E aí reside um pouco de minha dor...

P – Por quê?
Z – Pois eu era outra coisa, sei lá! Talvez uma abstração, uma ficção mais impura, cheia de “por fazer”. Mas então vim assim, já durinho, engomado, vitaminado, metrificado, rimado. Nasci errado.

(continua; um dia)

x.x.x.x.x.x.x.

(mas poderia ser uma crônica, um conto...)

20.10.12

Resenha - "Caixa Preta" e "Ocidente", livros de Nilson Galvão



 Nilson Galvão clicado no último rasante pela Sampalândia, outubro de 2012 (foto EF)

Dois livros de um mesmo poeta, o baiano Nilson Galvão, editados pela coleção Cartas Bahianas, do selo P55 Edições, revelam-se leituras complementares, diferentes, surpreendentes e... profundamente poéticas! Se ambos foram escritos sob os fluidos da sublimação, os códices adotados pelo autor, todavia, revelam sutilezas bem peculiares para cada uma das obras.
O livro “Caixa Preta”, de 2009, é um invólucro de alguém que estréia sem subterfúgios, com a narrativa e a poética de quem quer falar, e tem o que falar. Principiando com um inusitado “Poema de uma linha só”: “Leveza, nessa vida, é a linha de partida.”, o poeta diz logo de cara a que veio: buscar o espanto criativo, solapar a base estabelecida, duvidar, questionar e liricar. Pois não se é bom poeta sem a prerrogativa da intenção poética. E nisso Nilson Galvão dá mostras de vivacidade muito sagaz e original.
Outro exemplo sucinto é “Todo intervalo, toda pausa, algo em tudo denuncia / o vão. Onde não somos e no entanto ousamos / caber. E é inútil saber [...]”, em “O vão das coisas”. Mais adiante, agora em duas linhas, temos outra lírica rica em “A palavra coisa”: A palavra coisa, que estranha: / feito objeto sem forma.
Mais alguns passos e o poema “Crendo, crendo”, bem mais longo, revela todo o imã por onde se orienta a bússola do poema. Extraio um pequeno excerto só para aguçar a vontade do leitor: “Todos deveriam deixar de saber / um dia. Nossas idéias esquecidas / numa caixa de guardados / sem uso, nossos corações em dúvida.[...]”
O livro todo se mantém coeso com a proposta poética do também jornalista Nilson Galvão. Essa coerência está em todo o seu pomar poético, já que o ritmo, a imaginação, o ineditismo e a singularidade do artista permeiam toda a caixa preta, até a última página.
“Ocidente”, seu segundo livro pela mesma editora, é de safra colhida neste ano. Nele, percebe-se que, se sobrava maturidade ao poeta estreante, agora somam-se outros atributos: suntuosidade, estilo, mais conhecimento e – claro! – inspiração ainda mais solar. Nilson desengaveta aqui seus sortilégios estelares, verdadeiras pepitas de jóia rara, como em “Sal e pimenta”: “[...] E penduramos a dor como no / açougue: sangrando, sangrando, até ficar / exangue e pronta para ser levada por aí, / alimento nas intempéries. [...]”
Em outro momento feliz do livro, “Guia de viagens”, o curto poema diz com perspicácia: “A fé conduziu / Dante. / O ácido, Huxley. / Vai-se, de um jeito / ou de outro, ao inferno / e ao céu.” Os versos redondos fecham-se com argúcia e – agora sem as dúvidas do iniciante – instauram um “e” na última linha, que bem poderia suscitar um desgosto crente. Bastava para isso um “ou”, mas o poeta preferiu a ousadia e destreza de suas certezas.
Ganham todos, aquele que escreve, quem o lê, aquele que reflete, e quem, como eu, ceticiza.



12.10.12

11.10.12

Resenha literária: "Valentia" (Deborah Goldemberg)



“A história contada pelos perdedores”
 Valentia, de Deborah Gondemberg, é um livro bonito e intrigante desde a capa. Esta, é de um vermelho encarnado com um desenho sutilmente trabalhado em tom cinza para não contrastar severamente com a cor dominante. O título, vazado pelos traços, metaforiza de cara que o enredo trata de sangue. Bingo!
O romance leva-nos à Cabanagem, guerra travada pelos portugueses contra a população no norte do Brasil entre 1835 e 1840, e que permanece escondida nas brumas históricas. Déborah (que também é antropóloga) nos diz, que quando estava enfurnada no meio do nada, lutando para dissipar um pouco dessa nuvem negra na história do Brasil, foi que a história lhe surgiu. Com essa trama, urdida entre a verdade histórica e os tons romanescos e fictícios, acentuou-se ainda mais a riqueza do estudo que a autora pequisa empiricamente.
Da leitura que fiz, posso dizer que o livro conta a versão pelas palavras dos “derrotados”. A história é montada em dois planos: um, no passado, através das peripécias de Samaúma, o inquieto herói do enredo, que narra as condições em que entrou na resistência aos portugueses que estavam retomando as cidades que os revolucionários tinham dominado. No outro plano, já no presente, os descendentes do lugar comentam a herança do horror da guerra e como a história foi tantas vezes recontada pelos seus ancestrais, sobrevivendo na língua do povo. Aqui, o romance incorpora elementos não fictícios e desdobra-se pendularmente com o real. Os dois lados ganham.
Sem mais delongas, vamos ao enredo: Luís Samaúma, ex-seminarista, filho de pai índio e mãe francesa, cresce com o amigo Deusdete em um internato em São Luís, no Maranhão. Por motivos diversos, ambos entram para a resistência aos legalistas, as tropas federais que, depois do assalto à Belém, lentamente penetram no interior a serviço do governo, recuperando os territórios, dizimando sem piedade as populações ribeirinhas, sejam crianças, mulheres, velhos ou jovens. Como em toda a guerra, porém, a questão mais importante não é a simples retomada da terra da mão dos incautos incendiários que ousaram sonhar com a liberdade. Às tropas do governo, interessa, sim, usurpar, violentar, fazer sangria de toda a força revolucionária, apagando qualquer chama libertária daquele povo que ousou combater os desmandos do governo. Aos soldados, importa a morte exemplar, a não indulgência, a potência da “voz oficial” que rompe qualquer laço de afetividade, memória ou história. O que deve prevalecer é a ordem institucional. A quem ousou questionar essa ordem, morte! A quem vive próximo, a mesma sorte.
É nessa luta desigual que Samaúma torna-se guerreiro-guerrilheiro, vira homem, torna-se bicho. Faz amizades, inquire, sonha, saudadeia, ri, chora, lastima, comemora. Vai amealhando amigos, personagens que ensinam a ele a arte de crescer e viver, com suas transitoriedades e controvérsias. O homem descobre que a luta renhida não é só contra o inimigo, mas às vezes contra seu próximo e até contra si mesmo, seus instintos.
A alternância temporal – recurso que a autora usa com muita propriedade – ajuda a quebrar, no leitor, a navegação in loco, que pareceria uma viagem labiríntica. A partir do momento que somos remetidos aos depoimentos do presente, temos então uma “historicidade narrativa” que nos lembra que a luta de Samaúma é no campo de ficção, é re-criação, é artesania artística, os relatos dos herdeiros da Cabanagem é que são realidade. Todavia, logo no capítulo seguinte somos levados de volta à Amazônia do século 19 e adentrados no terror da guerra novamente. Essa disposição textual, então, cumpre seu papel, fazendo com que essa duplicidade na leitura engendre um certo ineditismo narrativo, ao mesmo tempo que soma vertentes que escolas caducas definiriam como antagônicas: o depoimento real justapondo-se à ficção.
Hoje sabemos que não é assim. Que ambos – História e ficção romanesca – bebem no mesmo cântaro e processam-se pelo engenho da arte.

Goldemberg, Deborah Kietzmann. Valentia. SP: Grua. 1ª ed. 2012.