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31.3.20

Uma cronicazica: "coronada - VII (os estrangeiros)"


Estava distraído quando a viatura diminuiu a marcha e o sargento bateu em meu ombro, dizendo "sua vez, acompanha o cara lá!"
- Hã?!... - Bocejei.
- Vai logo, meu! O alemãozinho é todo ligeiro, já tá indo abordar a mulher.
- Sim senhor.
Desci meio displicente, suando, o calor cansado pesando em cada gesto. Pus a mão no coldre. O fiscal batera a porta do carro da prefeitura, atravessou a rua e me encarava, aguardando a proteção. Fui.
Olhei a loja. Pequena, uma porta cerrada, a outra aberta, o cartaz informando sobre a pandemia. Uma senhora sentada numa banqueta, nos olhava, assustada, as mãos cruzadas sobre o peito, prevendo o chumbo grosso que viria.
Quando o garoto a abordou, fiquei dois passos atrás. Os olhos úmidos dela durante o diálogo curto e ríspido, a todo momento procuravam os meus. E quando me alcançavam, eram de indignação, misto de revolta e dor. Para não que abaixar a cabeça diante da cobrança muda, virei de lado observando a rua: todas as outras portas fechadas ou semiabaixadas, como se fosse uma declaração de luta e luto. Poucas pessoas transitando, a sensação de que me encaravam. Ameacei tirar o Ray-Ban mas fiquei com vergonha de olhar o mundo de frente. O suor escorria em meu rosto, ardia no sovaco, cintilava em meus braços contrastando com o amarelo vivo do sol.
A mulher desembestara a questionar o rapaz da lei. E eu agoniado, querendo sair logo dali. Os carros que passavam pareciam raios, a luz incidindo com violência sobre mim. Cada vez mais nervoso, apertei a base do revólver.
As únicas pessoas brancas ali eram o Estado: um sargento distraído à sombra da viatura, navegando nas redes virtuais, e um fiscal molenga multando a comerciante.

30.3.20

Uma cronicazica: "coronada - VI"


- E aí, patrão? - Ele apareceu de repente tapando o sol que entrada pela porta semiaberta, naquela manhã.
- Tudo bem? - Eu estava ocupado e não dei maior atenção a ele.
- Tudo bem, doutor. - Respirou fundo, olhou ao redor e percebendo que eu estava ocupado, ameaçou sair.
Foi quando tirei os olhos do notebook e o encarei:
- Tá tudo fechado, né?
- Tudo fechado, paiê. Tô lotado de papelão, plástico e até latinha lá, mas ninguém tá comprando.
- E como você tá fazendo pra comer esses dias?
- O pessoal que normalmente me serve um café ou até dá um almoço também tá fechado - ameaçou sair.
Notei seu carrinho estacionado na sarjeta, vazio.
- E como você tá fazendo?
- Ah, padrinho, se eu não morrer de corona, de fome é que não vou morrer não - e saiu da frente da luz. Sua sombra dançou na calçada fria da manhã de sol. - Sempre dou um jeito, como qualquer coisa.
Sem saber o que fazer ou falar, improvisei o único gesto que um egoísta sabe fazer: escolhi uma nota no bolso, ofereci uma garrafinha água, olhei com dó e até ameacei um tapinha nas costas sujas.  Toque não pode, estamos em quarentena.


29.3.20

Um textículo: "talvez um poema, ainda sem título"


solidão que pode ser um pingo
um lago
ou o mar.
quatorze, quarenta
uma centena
a eternidade: tudo pode ser solidão.
ou não.

28.3.20

Uma cronicazica: "coronada - V"


Num dos grupos da família, no meio da quarentena:
- Eu acho que já passou da hora de aprovar esse negócio de taxar as grandes fortunas, sim.
- Acho mesmo que tinha que cortar 30% dos salários dos juízes.
- Dos políticos todos.
- É, mas daí vão querer cortar também de quem trabalha nos gabinetes.
- É mesmo. Melhor não mexer nisso não.
- O melhor mesmo é ficar quietinho, ver no que vai dar.
- Verdade. Quem não é visto não é lembrado.

27.3.20

Um textículo: "nóxio abnóxio inóxio"


Poema - Tipo de agente infiltrante

Descrição - Os poemas são seres muito simples e pequenos, formados basicamente por uma cápsula proteica envolvendo o material sinestésico, que, dependendo do tipo de poema, pode ser o DNA, RNA ou os dois juntos. A palavra poema tem suas origens: a) no latim poema, derivado; b) do grego póiein, que também pode ser resultado; c) do grego poiesis: criar, compor, fazer algo; d) ou, segundo Octavio Paz, uma palavra semanticamente instável, que se vincula, pela etimologia e por natureza, à poesia.

A alternativa D pode ser a mais correta.

Fonte - Wikipédia

26.3.20

Uma cronicazica: "coronada - 4 (o sublime e o zen na palavra foda-se)"


Querido diário, queria dizer para você que este subtítulo é uma afronta aos meus princípios, mas hoje estou movido pelo hálito da ironia. Então, suporte-me.
Ah, antes de iniciar, também espero que você note a agudez dessa traça que me ri por dentro, a chacota, e está clara - mais que clara, transparente - na palavra "querido" e na própria sugestão de que você seja um "diário". Diário? Como assim? De onde tirei essa ideia (quase uma certeza absurda) de que vou abastecer você aqui com esses falsos assuntos a cada rodada do sol?
Mesmo assim, "querido", digo que hoje amanheci bem. Melhor que ontem, que já tinha sido melhor que anteontem (aqui, numa linha só, já matei 3 dias de depoimento hahaha). Mas volto ao tema e explico com clareza: dormi dez horas essa noite. Dez horas, você acredita? E - detalhe! - seguidas! Olha que sortilégio! E você deve estar se perguntando como cheguei a esse oásis, esse orgasmo edênico.
Digo que tudo isso ganhou contornos ontem, quando resolvi apertar o tal botão foda-se. Como fiz isso? Ah, eu sabia que você iria perguntar, é bem típico de você essa curiosidade mordaz. E como sou ególatra, respondo sem pestanejar, apenas fazendo um charminho inicial, só pra criar um falso clima de humildade. Apertei o botão quando percebi a  armadilha que é a clausura desses dias, por conta desse vírus desleal que empurrou todo mundo pra dentro de suas casas.
Confesso, ficar fechado comigo é insuportável. Minha cabeça não dialoga com o coração. O pâncreas e o fígado vivem às turras e a perna direita todo dia tenta derrubar a esquerda. Aqui é uma terra sem lei. Melhor, é uma terra de leis duras e orquestradas, onde uma mão escreve, a outra nem passa perto. Tanto que agora até os olhos parecem olhar diferente, o que um vê melhor de perto, o outro parece enxergar com mais precisão de longe. É uma doideira esse corpo aqui, a boca balbucia um samba e o dedo já tamborila na coxa.
E já que fiquei fechado, decidi me lacrar. Mas não me suportei nem dois dias e já tive que respirar melhor pro lado de fora. E pra não machucar ninguém que convive comigo, resolvi guardar silêncio. Ocorre que quietude também machuca e meus espinhos já estava espetando tudo à volta. Por isso a maneira que encontrei de cortar esses espinhos que eu já vinha criando mesmo sem querer, foi podar eles com muita atividade: então o primeiro foda-se foi ontem à tarde, quando resolvi podar as plantas. Senti melhoras na hora. Hoje fiz mais: além das plantas, arrumei a porta de armário que estava bamba faz bem uns seis meses, tirei pó dos livros da estantes, dobrei roupa. Dobrar roupa, acredite, é um dos melhores exercícios de foda-se que descobri. Nunca mais reclamarei desse nobre exercício da prática zen.

25.3.20

Uma cronicazica: "coronada - 3"

Ele tinha acabado de entrar em casa, quando o telefone vibrou. Olhou, disfarçou, foi a banheiro, leu a mensagem: "Não consegui embarcar. Estou presa aqui."
Solícito, respondeu: "Nossa, que foda isso, hein?! E aí, o que você vai fazer?"
"Não sei, tô em dúvida. Mas não posso ficar aqui, parada. Ai... você não tem nenhuma ideia?"
Ele bufou entredentes: "Não tenho nenhuma agora. Você não tem parente aqui na cidade, ou então pode ficar em um hotel?"
"Não. Esqueceu que tenho família? Meu marido vai me ligar já já e eu não sei o que falar."
"E se você explicar pra ele que veio para atender um cliente?..."
"Mas foi isso que eu disse pra ele, homem de Deus! O problema é explicar porque estou aqui até agora e que por causa desse tal de corona, não consegui sair da cidade. E, se já não bastasse tudo isso, não tenho dinheiro para um hotel decente."
"Dinheiro eu arrumo pra você, pro hotel e pro Uber. Pode ir tranquila agora mesmo."
Meia hora depois: "Oi, não consegui hotel. Sem chance por aqui. Tudo fechado nessa cidadezinha ducaraio, viu!"
"Nossa, que catzo! E agora?"
"Eu que pergunto. Aliás... não tem um lugar pra eu dormir aí?"

Mais meia hora. Enquanto sobem pelo elevador, ele repassa todo o o plano pra ela:
- Bem, você entendeu, né?
- Entendi, claro que entendi... quer dizer, ainda estou tentando entender. Mas vamos lá!... você quer que eu fale pra sua mãe que sou a nova namorada do seu irmão, o Régis, é isso? Mas... ele não é casado?
- É, mas essa parte é tranquilo, a minha mãe não conversa com a minha cunhada. Então só diga pra ela que você é apenas uma amiga de trabalho, que estão vocês estão ficando, coisinhas assim. Ela é de idade mas vai entender, e o Régis é bem garanhão, tem fama... depois dessa parte, aí sim você conta a verdade, que não pode voltar pra sua cidade porque tá tudo parado por causa desse vírus, mas que amanhã cedinho dará um jeito. Depois dá uma disfarçada, fala que tá cansada e com sono. E vê se descansa.
- Mas não tem perigo dela ligar pro Régis ou ele aparecer aqui?
- Não. Ela até que é discreta, não é de se intrometer nem de fazer muitas perguntas, e ele mora longe.
- Mas ela vai perguntar porque o Regis não subiu.
- Fala que ele estava com pressa por causa da Paula.
- E quem é Pau... ah, tá... já entendi, entendi direitinho... ela é a nora, certo?
- Unrum!
- E eu, bem, eu.. não vou ter jeito, né? Sou a amiga de trabalho. Mas... será que ela vai acreditar?"
- Vai, claro que vai. Capaz até de querer fazer um bolinho de chuva pra você. Agora entra. Beijo. Boa sorte! Te adoro.
No outro dia, pela manhã:
"Oi, princesa, como foi aí com a minha mãe? Deu tudo certo?"
"Tudo bem. Foi mais tranquilo que imaginei. Mas seu irmão está aqui."
"O Régis? Como assim?"
"Sua mãe me recebeu super bem. Mas ligou pra ele, que veio aqui imediatamente ver se estava tudo bem com a nova namorada dele."

24.3.20

Uma cronicazica: "coronada - 2"


Era pouco mais de uma tarde. O sol rachava o asfalto. Um cigarra concertava no capim alto. No mais, silêncio e abafamento. Ninguém na rua. A moto surgiu depois da curva. O rapaz olhou a viatura, ameaçou parar mas considerou a distância e decidiu seguir. Veio, devagar.
O policial sacou a arma mas não apontou. Indicou com a mão para ele parar. Um lenço cobria o nariz, parecia um gângster.
O rapaz parou, desceu da moto e, com as mãos na nuca, foi para a calçada. Depois de revistado, pediram-lhe os documentos. Ele sacou a carteira, ciente de que agora sim tinha perdido a magrela. Licenciamento atrasado.
Neste momento espirrou. O cidadão da lei imediatamente recuou a mão, deixando cair a carteira.
- Você tá resfriado, cara?
- Acho que sim, senhor!
- E por que não avisou a gente? Vai, vai... pega seus documentos! Puxa o carro! Se afasta! Vai logo!
O rapaz abaixou-se, pegou a carteira no chão e subiu na moto. Deu no pedal até ela pegar, depois de duas tossidas secas.

23.3.20

Uma cronicazica: "coronada 1"


Ela veio pela rua observando a calçada quase vazia. Chegou em frente à banca. Fechada. Olhou ao redor. Tudo parado. Não acreditando que pudesse estar enganada, volveu o corpo bem devagar, e retomou o caminho de casa. Uma moça vinha vindo.
- Bom dia. Desculpe o meu engano, não tô gagá não, mas hoje é domingo?
- Não, senhora, eu entendo.  Hoje não é domingo não. Tá assim tudo fechado por causa da pandemia. Aliás, a senhora deveria estar em casa, protegidinha desse vírus.
- Pan?... Pan... o que é isso?
- Nossa! A senhora não assiste televisão? Não sabe que a cidade está de quarentena?
- Eu "vi" eles falando um negócio na televisão sim, mas é tanta coisa que eles dizem que nem sei  no que acredito.
- Então vou tentar explicar pra senhora, rapidinho. Está tendo um surto de uma doença muito grave, que atinge principalmente pessoas mais idosas, como a senhora. Por isso que seria bom ir logo pra casa e ficar lá, quietinha.
- Mas, e como vou fazer pra jogar no bicho?
- Não vai ter jogo do bicho não, senhora!
- Nãããooo?!...
- Não senhora.
- Minha Nossa Senhora. Era só o que me faltava. - E saiu andando sem sequer agradecer a atenção da outra. - Esse governo... esse  bem maldito governo. ´magina!, faz bem uns setenta anos que faço minha fezinha e agora, no fim da vida, eles inventam esse negócio de doença só pra acabar com o meu prazer. Eles agora deram um belo de um golpe baixo, viu!

21.3.20

Um textículo: "as águas rasas"


o rio amarelo, o mar vermelho, a lagoa azul, singram.
o rio doce, sangra.
o cio, sob o sol, seca.
o rio tietê, à sombra.

5.3.20

4.3.20

Um textículo: "crepúsculo"


singrando de dentro pra fora
os mares de mim levitam
levam mundo afora

as líquidas asas que se debatem
singrando de dentro pra fora
sangrando de fora pra dentro
deixam rastros
puro afã de seguir

então singro
rasgando véus e cortinas
luta diária com o luto