Pesquisar este blog

28.2.19

Um textículo: "estéril"


pedia emprestado o prato
o alimento
a fome
pedia emprestado o regime
pedia emprestado o gozo

deixou tudo 
tudo ao deus-dará
e nada para ninguém

27.2.19

Um textículo: "mães de santos"


mãe solteira de mateus
mãe de marcos, viúva
mãe de lucas
irmão gêmeo de joão

senhoras mães
senhores filhos

26.2.19

Um textículo: "casal"


Era uma vez uma história em que foram felizes para sempre.  Felizes é sinônimo de juntos e sempre é nome do lugar.

25.2.19

Um textículo: "despetalá-la"


é uma cena de amor
a brisa acariciando o pescoço
despenteando a flor

o ar insinuante, a levá-la
elegante
nessa pista de dança

a alma, a levitá-la

é só
uma cena de amor
a morte, à espreita, a querer
abraçá-la

a música do vento, 
a evitá-la
vento em abundância
fogo frio faísca fina
o ar a levá-la

água seca em garganta atarantada
a cor da onda leve a despetalá-la
a luz do sol sobre seu amarelo macio
a emplumá-la

flor em risco 
o ar a levará.
ao mar?
e dez poetas a saudá-la




24.2.19

Um textículo: "enchente"


Quando foi encontrado, estava sujo e retorcido, no meio da lama. Malu o limpou com cuidado. O aquário continuava intacto nas páginas 7 e 18. Todas as letras sobreviveram. A história de Glub Glub não se perdeu. 

23.2.19

Um textículo: "reverso"


nem sei mais o que fazer
com essa poesia que infinita-se em mim
poesia errante
maloqueira, solta, leve, trovejante
nem sei o que faz aqui
poesia de tirar o sossego
berrante
de levar a outros mundos
outras vidas outras poesias
poesia abundante
que vai vira volta voa
e nunca entendo
porque faz morada aqui

22.2.19

Um textículo: "verságios"


estranha essa vaidade
de achar que todo poema bom
eu poderia ter escrito

estranha essa vontade 
de escrever de novo
tudo que já foi dito
e está aí, só colher
no pomar de nuvens

mais estranho é pensar
que possa pensar 
em algo inédito
quando essas linhas aqui
se próprias, são plágios
dos desistentes que me precederam

20.2.19

Um textículo: "estudo para futuro poema"


tem feridas profundas e não sabemos onde estão doendo
mas estão
as pessoas estão suscetíveis, fragilizadas
cada vez mais cabisbaixas
e a vida mais aguda, chata, breve, pra quem 
vê tudo em linha reta
só, na perspectiva do consumo

ainda bem que a arte me regenera todo dia
um mar me embrulha por dentro
essa forma visível de um tsunami interior
e dá nó no lado de fora
me traz mensagens dentro de garrafas
abstração de nuvens
imperfeita comoção 
desrazão

18.2.19

Um textículo: "belchiorando"


estava aqui pensando
em tudo o que ultrapassei
até chegar ontem
por onde andei
no auge dessa meia idade
só lembro das aventuras adolescentes
de todas as desventuras 
e de tanta coisas desimportante
e outras que sempre me deixam tonto
como as contas de telefone
telessena e telessexo
e de coisas mais importantes
como o futebol contra a rua de cima
e de coisas mais importantes
como o último verso daquela música
e de coisas mais importantes
como lembrar aonde foi que esqueci
aquela ponta apagada
e quando foi que esqueci 
que aquela porta aberta
permitiria a entrada de tanta gente
reclusa e ensimesmada
estranha e desassossegada

Um textículo: "eureka!"


Povo falando de umas borboletas no peito e eu aqui com mariposas dentro da cabeça. Quando a apago elas me dão sossego.

15.2.19

Um textículo: "deglutir"


no canto, a cigarra trabalha
enquanto
o joão-de-barro constrói seu canto
no bico
(duro silêncio de alvenaria)
enquanto
formigas assobiam um blues cansado
na dura rotina do transporte
de folhas
enquanto
aranhas tecem o refinado tecido
labor intrincado entre arte e sobrevivência
enquanto
a saciedade descansa e devora
em redes, teias, laços
nós




14.2.19

Um textículo: "virilidade"


a contraparte da feminina solidão
é a sólida disposição de homem
em se manter longe do doce abraço
com seus escudos de aço
e sua fome fetichizada

a outra parte, espelho da culpa e do medo
se autoproclama pelo título
o outro nome da vaidade

13.2.19

Um textículo: "meditação"


a lápide corroída
“aqui jaz o que parecia eterno”
sem inicial maiúscula
sem ponto final

imóvel
estátua ao sol, contemplo 
o templo à frente

o tempo desanda

12.2.19

Um textículo: "erupção: o cio da pele"


queimaram o rio
inundaram o rio
perderam o domínio do rio
e de toda a água que há
esse vazio da falta de ar
maior que tudo
que o urro gigante
que jorra e forma
o mar
mar caudaloso
mar maior que cio
mar de escunas, de grelo à mostra
para o astro-rei, para o céu
mar de crista espumante
das duras ondas que tombam
e rompem e rumam, retomam e
reformulam o cio das águas
que minam na terra seca
e molham as nuvens soltas
e ovulam e orvalham e inflamam
na lírica convulsão de magmas

agora adormecidas
no fundo da derme do lago
dentro do vulcão

9.2.19

Um textículo: "poema minúsculo"


Escreveu o título, esperou o enredo bater à porta, cochilou. Acordou quando o último verso virava a esquina. 

8.2.19

Um textículo: "ciúme"


Deu tesouradas certeiras nos olhos. Depois seccionou-a em várias partes e colocou em sacos de lixo. A irmã nunca mais veria aquela boneca.

6.2.19

Um textículo: "canvas painting"


sol sobre césar

suor sob a luz
secura sob o suor 
contrações involuntárias do corpo

não se sabe 
se é estado
de poesia, de tesão ou desatenção à saúde

5.2.19

Um textículo: "hiato"


dezembro é um trem que passa sem
freios, ameaça parar
na dura subida do fevereiro
e nunca anda de ré

dezembro é lembrancinha comprada
em feira de artesanato.
é dar tchau quando
não há mais volta

dezembro é a falsa alegria da nota
de um real achada no meio-fio

gases expelidos no passo inseguro

febre de menos de 38 graus
dor de anestesia
dor sem dor
dor que dá só em pensar na dor

é um domingo demorado
sorriso tímido, de dentadura solta

dezembro começa faltando meia hora para a virada
dezembro é a antevéspera do ano do javali
dezembro só acaba depois do carnaval

4.2.19

Um textículo: "a festa de aniversário"


quando nasci, junto com meu filho
nesse dia acreditei em deus.
já o amava antes e, prostrado, 
continuo devoto nessa nada modesta
adoração

hoje, por exemplo, é dia de celebração

3.2.19

Um textículo: "a respeito e em respeito ao corpo"

Foto: Helmut Newton

um corpo é um corpo é um corpo é um 
corpo
a palavra corpo é outra coisa
quase o avesso do corpo
(não, não é a alma
alma é outra coisa, depois comento isso)

a palavra corpo é casca, pele, signo
a palavra corpo é bonita
assim como todo corpo é bonito

com bom ou mau tempo
contemplo esse corpo (que comento)
como dádiva 
celebração da vida
exultação de uma abstração divina

o espírito, ponte para a alma, inveja
o cheiro do corpo
a textura, o desenho e até a falibilidade
do corpo
o espelho que reproduz o corpo
deixa a alma em conflito
pois não pode tê-lo
daí a necessidade de sacrificá-lo
usurpar sua autoridade natural

o lamento da alma é depender 
da imaginação para existir
mal sabe ela que o corpo 
também depende dessa projeção