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Reprodução: http://osdozeolimpianos.blogspot.com.br/2012/11/habilidades-dos-semideuses_18.html |
(* Texto feito especialmente para a oficina
de criação literária "Inéditos & Inacabados", d´A Casa Amarela -
Espaço Cultural (São Miguel Paulista, SP) em 02/07/2016, sob mediação de
Luka Magalhães. A oficina tinha como mote construir um texto de
qualquer gênero com o tema "herói")
No primeiro dia de aula ela
conversava com a turma. Perguntou nome, cor preferida, o número da
sorte, se gostava de doce e pizza, o nome dos pais.
Sara sentava no
meio da sala. Quando a professora perguntou o nome da mãe, ela disse Eva
e Dara. A professora não entendeu, então prosseguiu, “Eva e Dário?”
“Não, fessora, Eva e Dara!”. “Ah, bonito nome. E o nome do papai?”
“Pai? Pai eu não tenho. Quer dizer, eu tenho o papai do céu.”
A
velha mestra, quase aposentada, experiente e preparada para improvisos,
calou por um momento. Seria abandono do lar, morte, não reconhecimento
da paternidade? “E o seu pai da terra, minha linda?”, questionou com
brandura.
“Nada, fessora. Esse eu não tenho. Não preciso.” Enfática, a menina sorria, prestativa e cândida.
“Como assim, não precisa?”
“Não precisa porque acho que não preciso, fessora!”
“Ah, tá... entendi. E você mora só com a mamãe? E com a vovó, também?”
“Não, a senhora ainda não entendeu fessora; eu moro com minhas duas mães, Eva e Dara. Tendeu agora?”
A
mulher sentiu-se agredida pelas respostas retas da pequena.
Desencontrada, procurava palavras para sair daquela enroscada.
Levantou-se da posição incômoda que estava, respirou fundo, olhou a
sala, alguns rostos prestavam atenção às duas. Endireitou o corpo, bateu
nos ombros da menina e sentenciou as suas crenças:
“É... é melhor
ter duas mães, do que não ter nenhuma.” Bateu de leve no ombro da menina
e saiu andando. Teve vontade quebrar os ossos dela, de correr dali.
Precisava passar por isso? Aquela menininha linda, esse diabinho, toda
arrumadinha, isso é uma afronta! Filha do cão! De duas cadelas...
Chegou
à mesa, olhou de soslaio para a pequena, que respondeu com olhar
inocente e firme. Chamou a aluna da frente para se apresentar mas não
prestou mais atenção em nada. A partir dali, viveu uma agonia dolorida,
sem sentido, um mal estar lancinante. De repente, todas as suas certezas
viraram de ponta-cabeça: realmente o diabo era mesmo um anjo de luz! E
estava ali o exemplo mais concreto de tudo o que já tinha ouvido falar,
diante dela, a assombração, a enviada do mal, a enganação. Poxa, mas
tinha que ser no corpo de uma menina tão educadinha, tão bonitinha?...
Todos,
ao fim, se apresentaram. Ela, ainda vexada com a menina de duas mães
(toc toc toc na madeira...), finalizou o inquérito, pediu um texto sobre
um herói da vida deles, queria ver como todos ali estavam de redação.
Enquanto cada qual se debruçava para escrever o texto, ela pediu
licença, saiu para tomar água. Precisava falar com alguém, tinha um
demoninho simpático entre as suas crianças. Pensou em pedir à diretora
que a mudasse de sala, não suportaria ficar um ano todinho com uma
menina feita de um amor que não era amor, isso era uma modificação na
ciência exata de Deus, uma aberração que vinha provocar suas convicções.
Procurou na sala dos professores, na diretoria, na coordenação. Nada!
Todos estavam ocupados, ninguém se daria ao luxo que ouvir sua queixa
sincera. Encontrou no corredor a Zinha, mas tinha uma antipatia sincera
por aquela professora branca que só sabia discursar defendendo negros,
índios, sem terras e outras minorias. “Maiorias”, essa é que é a
verdade. Falaria isso da próxima vez, caso a ouvisse discutindo esses
assuntos menores. Menos importantes, sim, quer a outra queira ou não,
pois não seriam discursos retóricos que modificariam a realidade dada.
Todo o jornal, revista ou rede de televisão importante sempre se
referiam a esses grupos como minorias. Será, por Cristo, que agora todo o
mundo estava errado e só meia dúzia de radicais xiitas estariam certos?
Descontrolada,
guardou silêncio quando passou ao lado da amiga, tomou um café na
cantina e voltou. Entrou na sala e foi para sua mesa.
“Terminaram?”
“Nãããooo, professora!”
“Eu terminei”, gritou uma afoita Sara, exibindo a folha solta do caderno.
“Por que você arrancou a folha do caderno, gracinha?”
“Para entregar, fessora!” Sara tinha se levantado e caminhava na direção dela.
“Não
era para arrancar a folha. Eu ia corrigir no caderno. Faz o seguinte,
volta lá e copia sua redação no caderno. Depois dou a nota.” Morreu de
medo da garota aproximar-se dela.
A menina amuou, voltou e sentou, se
concentrando na cópia. Quem estava desconcentrada era ela, sem entender
porque tinha ficado tão desconcertada apenas porque uma aluna tinha
revelado coisas que ela não aceitava como normais, coisas que ela não
entendia muito bem. De repente, porém, tudo foi clareando. Alguma coisa
estava errada, não se encaixava e – pior de tudo! – talvez nem fosse
problema da garotinha. Deduziu com desconforto que o problema poderia
ser com ela! A criança, ali, de cabeça baixa, escrevendo sua história de
forma obediente, talvez – talvez! – não tivesse culpa alguma. Isso a
desconsolou.
O sol invadia e cortava a sala com sua luz diagonal. O
trecho oblíquo bem à frente da garota a deixava envolta numa auréola de
pó, sob a sombra. O rosto contraído indicava devoção à lição proposta,
escrevia com devoção alguma saga interior, sobre o heroísmo de alguém.
Quem?
Mexeu-se na cadeira. Um calafrio tomava conta de seu corpo.
Ameaçou levantar-se mas viu que duas ou mais cabeças olhavam para ela.
“Que foi?”
“Nada, professora.”
“Então façam a redação que pedi, vai...”
“E você?”
“Não tenho herói, professora.”
“Ninguém pra você representa a figura de um herói?”
“Pode ser Deus, professora?”
“Deus pode, mas seria melhor se você pensasse no herói em alguém que fosse mediador entre Deus e os homens.”
“Como assim?... não entendi, professora.”
“Pensa em Deus como sendo algo maior que um herói. E pensa em herói como alguém que faz as vontades de Deus na terra.”
‘Ah, entendi.... obrigado, professora.”
“Agora todo mundo se concentra e façam a redação. Vão!”
Mas
como pode, meu Deus? Como pode uma criança assim crescer ao lado de
duas mulheres que dormem juntas, se beijam, se abraçam, tocam-se.
Arghhh! Teve uma repulsa natural ao imaginar o amor entre duas mulheres.
Não podia aceitar isso! E, pior!, sentia uma vontade sincera de odiar o
fruto desse amor. Que fosse adotada, guardada num orfanato, num
convento, na Fundação, mas, definitivamente, não podia aceitar que duas
mulheres que se tocavam pudessem criar uma criança linda como aquela.
“Acabei”, e o braço esperto de Sara levantou-se.
“Eu também terminei.” “E eu.” “Eu também.”
“Esperem, ela primeiro. Vou corrigir e depois vou chamando um a um, tá bem? Vem, traz aqui!”
Recebeu o caderno com nojo, a menina ao lado, num riso idiota de ansiedade.
“Pode se sentar agora. Quando terminar de ler e corrigir, te chamo.”
“Obrigada, fessora!”
Uma
ânsia quase incontida revirou seu estômago, quase vomitou. Respirou
fundo, sentiu a garganta seca: fessora, fessora, fessora! Ai, eu assumo.
Tenho nojo, muito nojo desse luciferzinho cheio de sorriso, de educação
e beleza!
Sara voltou para seu lugar, sentou e passou a arrumar o
material no estojo branco com florzinhas vermelhas e amarelas. Refeita
da hipnose, ajeitou-se e iniciou a leitura.
O sinal tocou, a sala se
dispersou na sua algazarra natural de intervalo, ela esperou todos
saírem e seguiu devagar pelo corredor. Lia compenetrada.
“
Eu me
chamo Sara, tenho 10 anos e sou protegida por duas heroínas. Uma se
chama Eva e foi quem me “ganhou”, me trouxe a esse mundo, em sua
super-barriga. Ela disse que quando estava grávida, cantou muito pra mim
enquanto eu ficava nadando dentro dela, protegida pela sua pele. Ela
também já me falou que enquanto eu estava lá, em sua barriga, teve um
monte de desconfortos, como enjôos, dores de cabeça, vontade de comer
coisas esquisitas, manchas no rosto e umas risquinhas na pele, as
celulites, que deixaram ela mais feia, mas ela diz que não liga. A outra
heroína que tenho se chama Dara. Foi ela que me protegeu do lado de
fora da fortaleza, pois elas falam que a barriga de uma mãe é uma
fortaleza, onde o bebê fica guardado contra todo tipo de monstrinho ou
de maldade que possam aparecer.
Dara cuidou de minha mãe Eva quando
nasci. E cuidou de mim também, deu mamadeira, trocou fralda, me ensinou a
andar, a escrever, contou historinhas... E sobre as risquinhas na pele
da minha mãe Eva, a minha mãe Dara vive falando que são um tipo de
tatuagem que marcou minha chegada. E que por isso mesmo são marquinhas
bonitas também. Ela que diz.
Elas também são heroínas pois além de
cuidarem uma da outra, e de mim, também cuidam de várias crianças, pois
as duas são professoras. Eu também quero ser professora quando crescer,
pois quero ser como professoras, pois todas que tive até hoje são
heroínas das crianças, cuidando, ensinando e confortando. Minha mãe Eva é
professora numa escola que fica em uma favela, lá do outro lado da
cidade, onde ela cuida de várias crianças de minha idade. Ela diz que
cuidar dessas crianças que às vezes não tem pai, nem mãe, ou até nenhum
dos dois, é proteger o futuro. Não entendo o que ela quer dizer, mas
deve ser alguma coisa muito importante, pois ela faz de tudo pras essas
crianças. Às vezes ela nem brinca comigo no feriado ou no domingo, só
pra ficar preparando a aula do outro dia. E eu até ajudo ela, popis ela
gosta e pede nossa ajuda. E a gente se diverte.
Já a minha mãe Dara
dá aula num lugar onde crianças que fazem algum tipo de maldade ficam
presas, sendo educadas por ela para que quando voltarem aqui pra
liberdade, se tornem boas crianças como eu tenho sido. Ela que diz.
Eu
acho que elas têm dois deuses diferentes, cada uma tem o seu. E me
disseram pra não se preocupar que depois eu descubro qual deles é o
melhor pra mim, pois, apesar dos nomes diferentes, são um só, que é o
nome do Bem. As duas vivem me dizendo que o importante é ter liberdade
pra escolher e seguir o coração da gente. Elas nunca brigam, são sempre
amigas, e vivem se abraçando, e me abraçando e me levando pra passear, e
assistindo séries e filmes comigo, fazendo cosquinha e até brincando de
soltar pum debaixo do cobertor. A gente se diverte e eu dou muita
risada com elas.
A Dara disse uma vez que ser feliz é um tipo de heroísmo. Foi por isso que fiz essa redação.”
Quando
o sinal tocou para a volta do recreio, as crianças ficaram um tempo a
sós na sala até que a diretora entrar e avisar que a professora não
viria dar mais dar aulas, pois tinha surgido um problema. E que outra
viria pra substituir já já.
“Ah, e quem é Sara?”
“Sou eu!”
“Seu caderno, lindinha. Ela pediu para entregar pra você. Parabéns! Parece que você tirou dez!”
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