A mitologia é uma recorrência latente do paradoxo da tragédia humana diante da complexidade da afetividade amorosa. Observando o mito de Isolda e Tristão, vemos as bases que sustentam enredos como Julieta e Romeu, Ceci e Peri, Capitu e Bentinho, Diadorim e Riobaldo, e outras. Os conflitos gerados e geradores no jogo da conquista amorosa (junto com a sanha pelo poder e luta pela posse da terra), são o fio condutor de todas as relações nas sociedades ocidentais há séculos. O que chama a atenção é que estes dois últimos são, na maioria das vezes, obedientes à força maior do primeiro, o interesse sexual e sentimental.
O romance Veredas do Morená, do escritor cearense (radicado em São Paulo) Gouveia de Hélias, se insere nessa via lendária ao retratar o amor entre a índia kuikuro Kamiri e Aruã, da etnia kamayurá. Ambos se conhecem durante o cerimonial do Kuarup (ritual em homenagem aos ancestrais, celebrado por diversos grupos indígenas da região do Alto Xingu, noroeste brasileiro). O idílio tem seu início quando o casal adolescente prova pela primeira vez, o encontro pelo olhar, licor embriagante de homens e mulheres de todos os tempos e todas as sociedades. A trama tecida por Hélias nos provê com uma história fortemente reconhecível por quem já viveu os dilemas, agruras e benesses da experiência afetivo-amorosa.
O que se coloca como antagonista, no entanto, é o fato do garoto não ter pai conhecido e ser portador de defeitos físicos, o que, na cultura tradicional de seu povo, seria uma condenação desde o nascimento. O sortilégio do menino foi que, desde a sua concepção, ele também foi muito amado pela família e a este fato se dá sua sobrevivência, que agora está em risco por conta dessa "maldição" que o persegue.
Todavia, o autor oferece mais que um bom drama. Sua obra vem costurada por uma apurada contextualização histórica, desde a chegada do homem português ao solo brasileiro em 1500. O texto também investe na pesquisa isenta para entender algumas práticas intrínsecas a determinadas culturas, como o infanticídio, determinante na construção do enredo.
Outro dado refere-se às ilustrações fotográficas de Marlene Noronha, cujos recursos visuais criam uma "poética de cores", que complementa e equilibra o roteiro, uma tragédia à brasileira enquadradas graficamente na perspectiva preta-e-branca.
Hélias, também autor de Dias Sem Compaixão (coletânea de artigos, crônicas e contos) e Os Sons do Adeus (uma robusta biografia romanceada do Padre Cícero), reafirma, através deste Veredas do Morená, a sua capacidade de colocar em igualdade os elementos documentais e históricos, contracenando com o objeto mitológico, derivado do saber ancestral e da experiência humana, fundamentada, acumulada e projetada pela linguagem da ficção.
Serviço
Livro: Veredas do Morená
Autor: Gouveia de Hélias
Gênero: Romance
Gênero Secundário: História
Edição: Chiado Books (2019, 1ª edição, Portugal)
Fotografias e revisão: Marlene Noronha
Editora: Vitória Scritori
Capa e composição: Marco Martins: Romance
fotos Luka Magalhães
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