bar de dia
nem baré
os pelos que vestem a pele que veste a gordura que veste o osso
estão nus
e flertam o sol
protegidos por diversas gosmas
que os protegem do ar
enquanto desfilam pelo calçadão da praia
sonham com banhos de mar
eriçam com as lambidas da brisa
namoram os raios libidinosos do sol
primos da legião apelidada cabelos
encaracolados, desgrenhados
menos aparentes
amortecidos por exércitos de tecidos
cortados rente
os pelos atravessam a faixa de pedestres
seguidos pelo olhar prestimoso
de dois tecidos de vidro
fumê
sancionada a lei: legalmente amadas, as pessoas ganham o direito a porte de alma.
será que só eu que vejo
amy sussurrando blue velvet?
só eu que a ouço de olhos abertos?
ou cassia duetando com ângela ro ro
assobiando cassiano?
beba orvalhos, lágrima da lua
como quem bebe esse fusco
os raios do sol
babando em haustos
nu na eternidade
vestido de arco-íris
cantante como formiga
travestida em cigarra
morto mata em nome de deus
quem não acredita em deus
era pra ser ficção mas virou a esquina
agorinha mesmo
esquentaesfria
gelapela
esfriaesquenta
animaprostra
tramatece
prendesolta
acendeascende
acertaaseta
torrageladeira
salgadoce
asaninho
![]() |
Esculturas de Adélia Lima (Uberlândia, MG) |
me lembro de já tê-lo lido
há tempos atrás
quando desfilava em algum lugar
incerto da memória
flanava, era uma manhã de outono
os ventos sopravam as penas soltas
dos pássaros condenados à liberdade
as folhas mortas das árvores
lembro da música seminal dos passos
sobre a madeira cortada
curtida e tratada, como se tratam
os animais tratados e curtidos
pela civilização
lembro do toque delicado do seu voo
voo da minha imaginação
o arrebatamento: as asas em seus pés
decolando
me levando a esse orgasmo
incompreendido e incompreensível
no seu céu
seus pés - minhas asas e meu ninho -
inexistiriam
se não fosse a poesia
acabou-se a época das entrevistas
pantagruélicas
as estampas, os cartazes, flyers
e todos os canais nas redes sociais
esgotaram-se, desa
brocharam dessa vez
a dupla MC ser1mano & DJ emissi
anunciou que não mais existe
mas
acabou
de lançar
o projeto-solo cérebro humano
CEO:
deus sem cetro
sem seus serviçais
sem centro do lado de dentro
homem caído
divertindo-se na queda
dos anjos subnutridos
céu derretido, pântano estendido
com os horrores de todas as dores
impregnado de odores
náusea das flores de todas as cores amorte
cidas
CEO é uma sociedade antônima
limitada pela usura
das juras
de seus senhores
por todos os lados
a fruta que pariu
partida em duas
pela puta em paris
é fruto da luta
a luta mais vil
que você já viu
onde o predicado é redundância
sinônimo do sujeito parece pecado
o gosto dessa mudez que você me permite
gosto mais ainda da que a minha imaginação cria
porque não sei escrever
desenvolvi sensibilidades
por não saber literaturas
aprendi a ler entrelinhas
por não saber falar
xingava em noturno silêncio
retrucava com o olhar
assentia com pesar
como nada ouvia
não sabia se calar
mas sabia se expressar
numa polifonia sinfônica
sentir era alimento
sentir interpretar sentir
interpreenterrar mais de uma vez
interpreemprestar e
sobretudo, interprerrar
Alguns anos antes de voltar ao ponto de partida, o poeta e jornalista Dailor Varela deu-me de presente a oportunidade de prefaciá-lo. Tratava-se da obra PulS.O.S., que continuava a sua beligerante empreitada de suas antecessoras, contra o bom-mocismo da poesia brasileira. Fiz o texto, mas ele partiu antes que seus versos viessem à luz, o que só aconteceu agora, por obra de sua filha, a também poeta Máh Luporini. Como o livro é praticamente o mesmo que ele me apresentou à época (acho que por volta de 2010), e como esta Apresentação não foi aproveitada para esta edição, tomei a liberdade de reproduzi-lo integralmente aqui, como forma de admiração e amizade para com o aldeão, de quem conservo muita saudade de nossas conversas por carta ou ao pé da rede, em sua casinha de frente para a montanha, em Monteiro Lobato. Boa leitura!
Apresentação - “´PulS.O.S.´, ou O Grito de Um Poeta em Processo”
Em tempos pretéritos, Dailor Varela, o poeta–xamã que agora escreve versos lancinantes como Testamento: “Morto... / Deixarei o silêncio / dos meus labirintos. / Uma solidão que não / precisará de corpo.” – um pungente epitáfio para sua filha Maíra –, esteve na proa de um movimento que sacolejou a poesia brasileira em fins da década 1960: o poema/processo, uma derivação (ou se preferirem, um aprofundamento) das questões estéticas lançadas pelos poetas do Concretismo uma década antes, e já remexidas por aqueles que praticavam o poema-práxis. Apaixonado pela vanguarda mas sem largar o timão do anteriormente aprendido e apreendido, Dailor Varela, junto com seus companheiros de experiências poéticas sensoriais, colou, distendeu, copiou, inverteu, cobriu, clonou, modificou e – eventualmente – escreveu palavras e/ou figuras. Como um signo fílmico que precisava ser revelado quantas vezes fosse necessário ou possível, quer dizer, reinterpretado à exaustão para daí extrair outro sumo, uma vitamina diferenciada para fruição do êxtase poético, o verso deixava mais uma vez a linha horizontal da leitura para saltar aos olhos, seja através espacialização ou entortamento do verbo ou sua significação, e a conseqüente visualização física do poema; ou a transformação dessa mesma palavra num layout imerso na mesma sublimação permitida à fruição de um verso bem arranjado.
A vontade de reinterpretar alguns cânones universais, a leitura de HQs, o pragmatismo siderado e juvenil dos novos combatentes, tudo para Dailor, combatente comprometido com o seu tempo e lugar, confluía para uma batalha em novos campos de atuação. Não podendo fugir ao diálogo e à guerra de interlocução com o inimigo, seja ele o “bárbaro comodismo” ou o status quo colecionador de teias, a prática poética exigia um novo comprometimento com todos os sentidos.
Para isso, era preciso lançar mão de novos elementos para prospecção de novas idéias; por conseguinte, formas inéditas de poesia. “beijos, abraços. escreva logo. entregue a carta de jomard. vá a casa de jomard. coma a sopa de dona celeste. fale com as irmãs casadas de jomard. saia com jomard. ame jomard. deixe jomard.” (sic) (Trecho de uma carta de Dailor de 1971).O dadaísmo tupiniquim ganhava contornos próprios. Estavam lançadas as bases de uma nova poesia. Ao lado de Moaci Cyrne, Falves Silva, Marcos Silva, Sanderson Negreiros, Nei Leandro de Castro e tantos outros militantes, Dailor Varela se municia de metralhadoras visuais, fuzis sonoros e palavras sensoriais, para daí provocar uma catarse coletiva. E o mundo literário nunca mais seria o mesmo nessa terra Brasil.
O poema agora poderia ser composto assim: “Uma nota antiga de 1 Cruzeiro com a frase ´O Crime Compensa´ sobreposta, colada sobre a face do dinheiro”.
Viraram os anos 60, chegaram os 70, o rock´n´roll perdeu sua tríade de “jotas” (Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix), a ditadura pegando cada vez mais pesado em território nacional, a guerrilha embarafustada nos rincões, respondendo aos rojões dos militares, a assimilação da bossa-nova, jovem-guarda e tropicalismo, do cinema novo, da poesia marginal, a black music, o Clube de Esquina (Milton Nascimento,Fernando Brant, Beto Guedes e tantos outros), a turma do Ceará (Fagner, Ednardo, Belchior, entre outros), baixando em Sampa. E o poeta Varela continuava assim sua luta insana contra a mesmice e o fogo-fátuo (fácil?) das escolas estabelecidas e suas declamações de formatura.
Daí pegou sua mala e também baixou na Paulicéia, essa mesma Sampa de Oswald, Caetano, Tom Zé e Rita Lee. Na nova terra tomou Bob Dylan, sorveu Dylan Thomas, mamou Ezra Pound, bebeu Belchior, comeu Mallarmé, e defecou arte de bom cheiro. E o ar da metrópole permitia agora um outro respirar, mais sujo e menos fantasioso, é verdade, mas repleto de novas partículas que ajudaram a compor um outro leitmotiv existencial, o poema em processo fragmentado pela urgência tecnológica. Para isso, talvez o uso da palavra não fosse tão ruim assim, desde que dividido com a efemeridade de todas as outras exigências do homem que respira concretamente na urbe. Então o poeta escreveu. E como escreveu!
Chegaram os anos 80, os 90, e então encontramos Dailor já não mais em São Paulo, mas em Monteiro Lobato, aldeia a meio caminho entre o desenvolvimentismo oblíquo de São José dos Campos e a fria e rica ternura embriagante de Campos do Jordão. De lá, o poeta mantém desde então uma parabólica ligada em Sampa, outra no Rio Grande do Norte, de onde ceifa frutos para sua ceia poética. Do novos tempos vividos na aldeia, surge uma nova lavra, mimética e minimalista, como Delíricos, por ex., exemplo de manufatura e fatura poética, e que agora o poeta vem dar continuidade e epílogo com esse PulS.O.S., que ele diz ser sua última incursão pelo território do verbo, já que pretende dedicar-se exclusivamente à arte da instalação a partir de agora. Notícias de jornal, tampinhas de garrafa, esparadrapos, folhas de árvores, cartões telefônicos, copos de massa de tomate, santinho de candidato, cuidado! Vocês correm o risco de ser arrebatados pelo Dailor e eternizados numa leitura que alguns darão o nome de loucura, a outros será indiferente, uma porção clamará “mas isso é o quê?”, e outros tantos (espero que muitos), vejam como obra de arte.
Recuperemos, portanto, uma verdade histórica de 40 anos e mais: um boeing se chocou contra as torres do provincianismo e do gagaísmo cultural natalense, e outro desses cruzou os céus fluminenses sob os braços abertos do Cristo Redentor. Ainda assim o sol de ambas as geografias não fagulhou cinzas. Ao contrário, iluminou amebas amorfas para a necessidade de reconstruir a partir do caos. Seria Dailor Varela, culto, belo e jovem, quem iria se sentar sobre os escombros e ver a banda passar? Afinal era um dos pilotos daquele homicídio das palavras. Mas eis que ele (e os outros), olham o horizonte, vêem as cidades sitiadas pela anestesia do conformismo estético. Se o mundo é cosmético, pondera, por que então permanecer espanando o pó que o vento leva? Era preciso provocar. Nada mais normal que radicalizar.
E devotou-se às palavras. Ou não foi Caetano que resolveu cortar o cabelo quando percebeu que todo homem agora queria ter cabelos compridos? Ou, como asseverou Bakunin, "toda paixão destruidora não é também uma paixão criadora"?
x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.x.
Serviço
PULS.O.S. - poemas de Dailor Varela - Organizados por Máh Luporini - Editora Desconcertos, SP (2014) - 100 páginas https://desconcertoseditora.com.br/loja/
a tv record foi uma das várias
educadoras da minha infância
era lá que assistia as séries
que me maravilhavam; tarzan, james west,
kung fu, laredo e columbo
era lá que via as peladas
do desafio ao galo no cmtc clube
aos domingos pela manhã
e as quase peladas da sala especial
toda sexta à noite, depois que minha mãe dormia
e meus irmãos ainda estavam na rua
e ainda pica-pau, frankenstein jr
os impossíveis, a princesa e o cavaleiro
e os melhores filmes de terrir
que aterrorizavam a nossa infância inocente
(lobisomem era insuperável)
a tv record ainda não era uma concessão
nas mãos de um bispo
dando xeque-mate em nossa alegria juvenil
essa sim, uma concessão curta
pois crescer é perder logo a inocência
e, por consequência, a felicidade estendida
não perdoo nunca perdoarei
os homens do poder que roubam seu ar
não perdoo nunca perdoarei
esses falsos amigos, seus familiares
defendendo esses homens a lhe esganar
- o que querem, a morte de outros
aos milhares? a quem vão enganar? -
e se você, cego, ignorante, com falta de ar
defende esses homens que roubam seu ar,
ora, vá se foder, abrace o azar!
Meu corretor dando uma de poeta: escrevi "ele ria", e o danado, "ele rua"; "ela riu também", e ele, "rio também".
Tá valendo: mais inspirado que eu.
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