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16.5.21

Dailor Varela e a radicalidade derradeira

 Alguns anos antes de voltar ao ponto de partida, o poeta e jornalista Dailor Varela deu-me de presente a oportunidade de prefaciá-lo. Tratava-se da obra PulS.O.S., que continuava a sua beligerante empreitada de suas antecessoras, contra o bom-mocismo da poesia brasileira. Fiz o texto, mas ele partiu antes que seus versos viessem à luz, o que só aconteceu agora, por obra de sua filha, a também poeta Máh Luporini. Como o livro é praticamente o mesmo que ele me apresentou à época (acho que por volta de 2010), e como esta Apresentação não foi aproveitada para esta edição, tomei a liberdade de reproduzi-lo integralmente aqui, como forma de admiração e amizade para com o aldeão, de quem conservo muita saudade de nossas conversas por carta ou ao pé da rede, em sua casinha de frente para a montanha, em Monteiro Lobato.  Boa leitura!


Apresentação - “´PulS.O.S.´, ou O Grito de Um Poeta em Processo”

Em tempos pretéritos, Dailor Varela, o poeta–xamã que agora escreve versos lancinantes como Testamento: “Morto... / Deixarei o silêncio / dos meus labirintos. / Uma solidão que não / precisará de corpo.” – um pungente epitáfio para sua filha Maíra –, esteve na proa de um movimento que sacolejou a poesia brasileira em fins da década 1960: o poema/processo, uma derivação (ou se preferirem, um aprofundamento) das questões estéticas lançadas pelos poetas do Concretismo uma década antes, e já remexidas por aqueles que praticavam o poema-práxis. Apaixonado pela vanguarda mas sem largar o timão do anteriormente aprendido e apreendido, Dailor Varela, junto com seus companheiros de experiências poéticas sensoriais, colou, distendeu, copiou, inverteu, cobriu, clonou, modificou e – eventualmente – escreveu palavras e/ou figuras. Como um signo fílmico que precisava ser revelado quantas vezes fosse necessário ou possível, quer dizer, reinterpretado à exaustão para daí extrair outro sumo, uma vitamina diferenciada para fruição do êxtase poético, o verso deixava mais uma vez a linha horizontal da leitura para saltar aos olhos, seja através espacialização ou entortamento do verbo ou sua significação, e a conseqüente visualização física do poema; ou a transformação dessa mesma palavra num layout imerso na mesma sublimação permitida à fruição de um verso bem arranjado.

A vontade de reinterpretar alguns cânones universais, a leitura de HQs, o pragmatismo siderado e juvenil dos novos combatentes, tudo para Dailor, combatente comprometido com o seu tempo e lugar, confluía para uma batalha em novos campos de atuação. Não podendo fugir ao diálogo e à guerra de interlocução com o inimigo, seja ele o “bárbaro comodismo” ou o status quo colecionador de teias, a prática poética exigia um novo comprometimento com todos os sentidos.

Para isso, era preciso lançar mão de novos elementos para prospecção de novas idéias; por conseguinte, formas inéditas de poesia. “beijos, abraços. escreva logo. entregue a carta de jomard. vá a casa de jomard. coma a sopa de dona celeste. fale com as irmãs casadas de jomard. saia com jomard. ame jomard. deixe jomard.” (sic) (Trecho de uma carta de Dailor de 1971).O dadaísmo tupiniquim ganhava contornos próprios. Estavam lançadas as bases de uma nova poesia. Ao lado de Moaci Cyrne, Falves Silva, Marcos Silva, Sanderson Negreiros, Nei Leandro de Castro e tantos outros militantes, Dailor Varela se municia de metralhadoras visuais, fuzis sonoros e palavras sensoriais, para daí provocar uma catarse coletiva. E o mundo literário nunca mais seria o mesmo nessa terra Brasil.

O poema agora poderia ser composto assim: “Uma nota antiga de 1 Cruzeiro com a frase ´O Crime Compensa´ sobreposta, colada sobre a face do dinheiro”.

Viraram os anos 60, chegaram os 70, o rock´n´roll perdeu sua tríade de “jotas” (Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix), a ditadura pegando cada vez mais pesado em território nacional, a guerrilha embarafustada nos rincões, respondendo aos rojões dos militares, a assimilação da bossa-nova, jovem-guarda e tropicalismo, do cinema novo, da poesia marginal, a black music, o Clube de Esquina (Milton Nascimento,Fernando Brant, Beto Guedes e tantos outros), a turma do Ceará (Fagner, Ednardo, Belchior, entre outros), baixando em Sampa. E o poeta Varela continuava assim sua luta insana contra a mesmice e o fogo-fátuo (fácil?) das escolas estabelecidas e suas declamações de formatura.

Daí pegou sua mala e também baixou na Paulicéia, essa mesma Sampa de Oswald, Caetano, Tom Zé e Rita Lee. Na nova terra tomou Bob Dylan, sorveu Dylan Thomas, mamou Ezra Pound, bebeu Belchior, comeu Mallarmé, e defecou arte de bom cheiro. E o ar da metrópole permitia agora um outro respirar, mais sujo e menos fantasioso, é verdade, mas repleto de novas partículas que ajudaram a compor um outro leitmotiv existencial, o poema em processo fragmentado pela urgência tecnológica. Para isso, talvez o uso da palavra não fosse tão ruim assim, desde que dividido com a efemeridade de todas as outras exigências do homem que respira concretamente na urbe. Então o poeta escreveu. E como escreveu!

Chegaram os anos 80, os 90, e então encontramos Dailor já não mais em São Paulo, mas em Monteiro Lobato, aldeia a meio caminho entre o desenvolvimentismo oblíquo de São José dos Campos e a fria e rica ternura embriagante de Campos do Jordão. De lá, o poeta mantém desde então uma parabólica ligada em Sampa, outra no Rio Grande do Norte, de onde ceifa frutos para sua ceia poética. Do novos tempos vividos na aldeia, surge uma nova lavra, mimética e minimalista, como Delíricos, por ex., exemplo de manufatura e fatura poética, e que agora o poeta vem dar continuidade e epílogo com esse PulS.O.S., que ele diz ser sua última incursão pelo território do verbo, já que pretende dedicar-se exclusivamente à arte da instalação a partir de agora. Notícias de jornal, tampinhas de garrafa, esparadrapos, folhas de árvores, cartões telefônicos, copos de massa de tomate, santinho de candidato, cuidado! Vocês correm o risco de ser arrebatados pelo Dailor e eternizados numa leitura que alguns darão o nome de loucura, a outros será indiferente, uma porção clamará “mas isso é o quê?”, e outros tantos (espero que muitos), vejam como obra de arte.

Recuperemos, portanto, uma verdade histórica de 40 anos e mais: um boeing se chocou contra as torres do provincianismo e do gagaísmo cultural natalense, e outro desses cruzou os céus fluminenses sob os braços abertos do Cristo Redentor. Ainda assim o sol de ambas as geografias não fagulhou cinzas. Ao contrário, iluminou amebas amorfas para a necessidade de reconstruir a partir do caos. Seria Dailor Varela, culto, belo e jovem, quem iria se sentar sobre os escombros e ver a banda passar? Afinal era um dos pilotos daquele homicídio das palavras. Mas eis que ele (e os outros), olham o horizonte, vêem as cidades sitiadas pela anestesia do conformismo estético. Se o mundo é cosmético, pondera, por que então permanecer espanando o pó que o vento leva? Era preciso provocar. Nada mais normal que radicalizar.

E devotou-se às palavras. Ou não foi Caetano que resolveu cortar o cabelo quando percebeu que todo homem agora queria ter cabelos compridos? Ou, como asseverou Bakunin, "toda paixão destruidora não é também uma paixão criadora"?

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Serviço

PULS.O.S. - poemas de Dailor Varela - Organizados por Máh Luporini - Editora Desconcertos, SP (2014) - 100 páginas https://desconcertoseditora.com.br/loja/

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