tudo adverso
o verso o anverso o inverso o transverso
o avesso
é verbo
fico observando o poeta
na portaria do prédio.
a flor cai sobre a lança.
ele a observa, e súbito
dá um salto na guarita, afasta a cadeira
pega a caneta e rasga-se todo
a rascunhar versos que não vêm.
o poema, lá fora, rasgou-se em dois
na lágrima fria da chuva fina.
repousa no bueiro e no canto do calçamento.
fragmentou-se, não existe mais.
nunca existiu.
Escobar Franelas é uma das figuras mais presentes e importantes dentro da produção cultural realizada na zona leste de São Paulo, ele faz parte da coordenação da Casa Amarela - Espaço Cultural, membro do coletivo de audiovisual Lentes Periféricas, fotógrafo amador e escritor. Publicou o livro de poemas hardrockenroll (Scortecci, 1998), o romance Antes de Evanescer (Scortecci, 2011) e o livro de história Itaquera - Uma breve introdução (Kazuá, 2014)
Escobar, de certa maneira você personifica a afirmação de que o homem é um ser coletivo participando de diversos projetos. Quando você se defronta com a solidão artisticamente e como lida com ela?
EF: Eu diria que naturalmente sou solitário. E foi essa solidão que me levou à procura de canais para a expressão. Parodiando Sartre, diria que o homem é um ser condenado a se expressar. E a arte - pensada como interferência do ser no meio social - pode ser entendida como meio e fim para que essa expressão aconteça.
Se os nativos não eram escravizados pelos padres, e se estes mesmos padres os protegiam na luta contra os colonos que pretendiam escravizá-los a todo custo, tampouco havia liberdades de escolha (Itaquera - Uma breve introdução, pg. 19). Se acrescentarmos os pastores protestantes dentro deste imbróglio e a expansão evangélica dentro da zona leste do final do século XX pra cá, podemos dizer que nos genes indígenas que todos carregamos, a população da zona leste herdou esta sinuca de bico?
EF: Putz, você tem razão, total razão! Isso tudo parece até um encadeamento macabro e confesso que vou mais além: esse problema não é só da zona leste, nem só das periferias, tampouco apenas do Brasil. Veja as questões recentes das agressões ao Suplicy na Livraria Cultura; a tragédia em Marina, MG; este ato tosco contra as vida humans em Paris. E as exclusões xenofóbicas que estão batendo transformando o sul da Europa num cemitério de crescimento exponencial!
Tudo isso é retrocesso, volta à animalidade que supúnhamos ter sido resolvida, todavia, a evolução humana não acompanha o avanço tecnológico, e volta e meia, tudo recrudesce e volta duzentos anos para trás.
Antes de ter contato com o seu livro de história, uma senhora havia me dito que a Avenida Marechal Tito se chamava Rodovia Rio-São Paulo, demonstrando a força da cultura oral. No lançamento do livro você disse que aquela era a primeira parte de um projeto que tinha como intuito construir uma trilogia, a qual seria concluída com a coleta de depoimentos dos moradores mais antigos da região de Itaquera. Como anda este projeto?
EF: A citação da Estrada Velha São Paulo-Rio é um excelente exemplo de como a história oral também é um documento sério para elucidarmos o passado, trazendo os saberes não oficiais para a troca e a citação. Quanto à trilogia, diria que está a contento, talvez um pouco atrasada, mas dentro de uma certa previsibilidade. O projeto que tenho em mente prevê uma nova obra mais ou menos em 2017, abarcando as mudanças radicais observadas em Itaquera entre os anos 2007 a 2016, e outro, de memória oral, que virá depois, talvez daqui uns cinco, seis anos.
Em algumas das crônicas (Como escrever poesia e Escrever, verbo intransitivo) que recortam Itaquera - Uma breve introdução, você menciona o problema do escritor diante do seu processo criativo. Tal reflexão sinaliza um não para a zona de conforto dentro do movimento criativo do pensar?
EF: Tenho um prazer enorme em escrever. Escrever qualquer coisa, seja um texto jornalístico, poema, crônica, conto, ensaio etc, me leva a esse êxtase. A “artesania”, o escalavrar a palavra, o ritual da escritura, a ordenação do sentido no texto, tudo isso me dá uma sensação de pânico e inquietude que só se resolve quando o texto fica pronto. E a completude, nessas condições, passa a ser um oásis, talvez o que para mim represente a ideia do paraíso edênico.
Antes De Evanescer é uma narrativa ficcional que se desdobra partindo de um fato real: Os ataques do PCC em 2006. Como o historiador colabora com o ficcionista e vice-versa?
EF: Quando escrevi o Antes de Evanescer, no auge dos problemas em 2006, na verdade nem sonhava em cursar História, o que vim fazer só três anos depois. Mas se pensarmos as coisas em termos lógicos, me parece óbvio que a observação aguda do tempo, matéria essencial para quem se propõe a historicizar as coisas, já estavam lá, comigo.
Seja como for, o enredo, apesar da tragicidade real, foi um desvario meu, e que algumas conjunções de situações e vivências me levaram a um cruzamento de improbabilidades. E aí, não digam aos que poetas que uma coisa não é possível! Pois o desafio amplifica as possibilidades a serem exploradas. Foi o que fiz: naqueles dias conturbados, me peguei pensando nos acasos que podem mudar consideravelmente o curso de uma história que parecia bem previsível. E escrevi sobre isso.
No fundo no fundo, confesso que tudo o que quis foi contar uma história de maneira o mais crível possível. Será que consegui?
Conseguiu, Escobar!
Com o coletivo Lentes Periféricas, você lançou o documentário Doc.Cine Campinho, o qual tem sido exibido em alguns eventos. O próximo projeto é produzir um documentário sobre o M.P.A. (Movimento popular de arte). A quantas anda a produção deste trabalho?
EF: Estamos finalizando a captação de entrevistas, agora vamos para a pesquisa dos acervos e pós-produção (edição de vídeo, de áudio, finalização, lançamento e distribuição). Para retomar este filme - que iniciei por volta de 2009, 2010 e depois parei, por falta de dinheiro e parceiros - a presença do Lentes foi fundamental. Mas para esta etapa final, a pesquisa iconográfica vai ser um tanto demorada e meticulosa. Para isso criamos uma campanha no Catarse (https://www.catarse.me/mpa) para podermos arrecadar uma verba e viabilizarmos o projeto do jeito que almejamos e que acreditamos que ele mereça ser finalizado.
Você escreveu o prefácio do livro de poemas Amador, do Rafael Carnevalli, lançado neste ano. Qual a importância de movimentos como o M.A.P na ocupação e ressignificação dos lugares públicos para a divulgação da poesia?
EF: O Movimento Aliança da Praça é um combustível que mantém vivo a utopia de nossos mentores/genitores/educadores. O MAP (do qual o “Amador” Rafael Carnevalli é um líder inconteste, emblemático e carismático), apropriou-se da chama intensa da cultura local, já vivido em outros tempos, e a manteve acesa, acrescentando novos elementos, oxigenando as relações coletivas e individuais na significativa Praça do Forró e seus entornos.
Os saraus que ocupam a cidade de certa maneira reaproximam a poesia da cultura oral? Funcionam eles como uma oposição a interpretações estreitas dos conceitos do concretismo?
EF: Os saraus são significativos pois: a) recuperam o protagonismo do ser enquanto artista, em seu meio e no seu tempo; b) retiram o fundamento financista que tem sido o mote-mór da expressão dita como artística na contemporaneidade ocidental; c) mantém viva a chama do encontro, do abraço e do aplauso; d) estabelecem um novo paradigma ao colocar no mesmo palco e diante da mesma plateia o “profissional” e o “amador”, o ser-artista e o estar-artista.
Como se deu o seu contato inicial com o poeta e parceiro na Casa Amarela Akira Yamasaki?
EF: Desde as minhas primeiras andanças em São Miguel, a figura mitológica do Akira já pairava sob o céu acinzentado pela Nitroquímica. Logo a seguir, tive a oportunidade de conhecer sua esposa, a Sueli Kimura, que dava oficinas de dança. Ela, Sacha Arcanjo e Raberuan foram as pontes que me ligaram umbilicalmente a Akira.
Hoje temos essa parceria, na cogestão da Casa Amarela. Conviver com ele é ter aulas diárias de explosões poéticas sem rebuscamentos desnecessários, é poder apreender frações da beleza da catarse e beber em haustos aulas de práticas cidadãs.
É comum ouvir dos frequentadores da Casa Amarela, que lá há uma aura mágica que se instala quando os eventos são iniciados, você também sente isso? Como explicá-la?
EF: Creio que tudo isso é mais sensorial, intuitivo. Não dá, portanto, para explicar ou justificar em palavras. O “ficar nu” diante das possibilidades propiciadas pelo êxtase artístico talvez seja uma resposta viável. Mas desconfio que isso tem a ver também com outras situações, esse lance de basear-se naturalmetne nos princípios da cultura da paz, do sorriso extravagante, da não politização e não capitalização do ambiente, que faz com o espaço fique mais arejado, sei lá! Talvez seja tudo isso. Ou simplesmente porque a Poesia pra mim (pra nós) é também um ímpeto sagrado, na qual comungamos com o mesmo prazer. Ou, mais modestametne falando, talvez seja porque simplesmente o lugar que, por diversos caminhos e circusntâncias, junta as pessoas certas no momento certo. Ou talvez nem seja isso e a resposta seja um mistério. E os mistérios ajudam a alimentar o mito, o suspense, o exercício da futurologia.
Quem é Escobar Franelas?
EF: Um personagem em busca de um autor.
(Depoimento para Fernando Rocha, Revista Digital Letras Et cetera, em novembro de 2015 - link: https://encurtador.com.br/bhvA)
tivesse nascido em divinópolis
seria talvez escobar dos prados
nascer em divinópolis
(o nome assim o diz)
é uma predição, bendição
mais que isso, essa rima: bênção
nascer em divinópolis é ser poesia
desde antes de pousar no útero
ser fecundado de um amor improvável
sempre amor sempre improvável
nascer dói viver dói amar dói
nasci em itaguases, fronteira com macondo
meio caminho para wakanda
vizinha a liliputh, éden, cidade de deus
| caça-palavras | tornozeleira | solda |
| marmitex | vômitos | soluços |
{a perna pelada}
[a taquara rachada calada]
(a primavera domiciliar)
a boca aberta, duchamp!
as palavras cruzadas, tzara!
p/ girlene verly
silêncio: meditação de poeta
silêncio: ronco de poemas
sendo produzidos
silêncio: antecâmara do big-bang
: o tudo preenchido de vazios
após o fim
os estados unidos da américa
tocados pelos nobres ideais
que movem a democracia
e os estados unidos do brasil
levados pelo mesmo sentimento
de seu irmão do norte
impediram o poeta de dizer não
a mão da liberdade pesa
pois o olho descoberto da justiça é cego
e já que é proibido proibir
impedir o permitir torna o todo igual
numa inédita rotina vária
os estados unidos de qualquer lugar
são uma mesma república
de ser o que não se é
e servir a quem não se vê
e seus poetas são etês professando fé
nessa deusa improvável
e demoníaca, a poesia
E se tudo for morte e a vida não existir? O que serão esses pequenos fulcros do cotidiano? O orgasmo à uma e dezessete da madrugada será o céu? O campeonato na última rodada, o flerte na fila, os livros do Cortázar, Hirondina e Zimborska?
Bastardos Inglórios? O filho nascido, o doutorado aprovados? Esses pequenos resumos são o quê?
O que será o céu, aonde estará o paraíso, como celebrar o prazer? Num poema de Drummond? Três versos de Bashô? Ou o abismo de Clarice? Está numa moldura no Louvre? Ou num divã em Viena? Na borboleta numa manhã de sol? O que é o Sol?
E o que será o inferno? A primeira broxada? Ou a última? A derrota por goleada? A Peste e outras pestes? A panela vazia ou a queimada? A cova mais funda ou a rasa?
E essa seda carbonizada, essa mente evaporada, o que é, o que serão?
Bar do Cantídio, oito e meia da manhã. Cena: um homem toma café e mastiga um pão de queijo em pé, junto ao balcão. Outro, mais jovem, está sentado em uma mesinha de lata, atento ao celular.
Entra um velhinho.
"Bom dia, Cantídio! Choveu essa noite, hein?"
"Bom dia, Garnizé! Ôxi, e como! Molhou até pensamento... vai querer um café?"
"Alagou tudo lá embaixo. Me dá um. Não não não! Melhor não, hômi. Comi um trem ontem que me deixou meio empachado até agora. Melhor uma latinha. Aliás, pensando bem, dá uma amargosa, pra rebater esse engrulho aqui."
"Fiquei sabendo. Branca? Ou amarela?"
"A água ainda nem baixou. A Branca perdeu tudo! Dá uma amarelinha."
fazia poesia
como quem faz solos de jazz::
sem regras sem réguas de rimas
dizem que fazia poesia
como quem se entrega
às declarações de uma flor
ao olho seco do sol
à vertigem do vento
à voragem das palavras
ao abismo das palavras
fazia-se poeta
como quem finge
ser outro ser
fazia poesia
hoje jaz
Era uma casa velha, com alpendre caindo, janelas esburacadas e teto comido por cupins e umidade. Ainda está lá, agora reformada, modificada, reerguida, com as linhas simétricas e retas da arquitetura contemporânea. O erro é meu, reconheço, perdido em afetos, nas lembranças dos anos pretéritos. Era uma casa velha e somente agora a vejo e bestializado, descubro que era apaixonado por aquela que não é mais. Não há mais. Sou apaixonado pelo que foi.
E da varanda envidraçada desse momento percebo uma piscadela sutil, irônica, sediciosa, me convidando a redescobri-la, sob a cortina estampada que dança suavemente à luz do sol de uma tarde que se esvai, e logo será outro passado, outra memória, uma esperança dirigida para trás. O vento flana e consigo distinguir seus silêncios de senhora impessoal, perceber suas entranhas monocromáticas de poucos móveis, as linhas fálicas de seu desenho frio, o desejo de ser nobre, quase
elegante; elegante, de uma frieza quase rude. Enquanto o amanhã não chega e tenho dificuldades em entabular este flerte, curto com pudor a velhice de ontem ameaçando o porvir.
O amor é extático.
Cheia de si, a lua se viu no mar, estranho espelho que estilhaçava e rejuntava seu rosto de luz.
Embriagada, mergulhou seu olhar dentro das águas salgadas.
Voltou sem se molhar.
dissolver você
essa pinta, essa boca, essas unhas
esse espelho - olhar de só ver você
da série haicaos
os jardins são na periferia da casa
jardins não são quarto sala cozinha
e não são os pomares
da série haicaos
- Du! Ô Du, vem cá!
- O quê?
- Vem cá, vem logo!
- O que é?
- O que é isso aqui?
- Isso o quê?
- Isso aqui. Não entendi...
- O que tá escrito aqui, é isso?
- É.
- Xis.
- X?
- É. Pra mim isso é um x, xis, chis, sei lá como se escreve isso.
- Se você não sabe como se escreve, como sabe o que tá escrito?
- Porque tá escrito, oras! Sei lá se está certo, mas quem escreveu, escreveu isso.
- Escreveu não, pichou!
- Escreveu, pixou, rabiscou, não importa. O que sei é o que tá escrito e o que está escrito é um xis.
- Mas não tá!
- Tá sim!
- Então soletra pra mim.
- Xis, ípsilon, zê: XYZ.
nada mais a fazer
o relógio em marcha lenta na parede
o calor abafado sobre as cabeças
igual ao vento frio que arrepia a pele
a coroa, o véu, as cores em tons pasteis
ventiladores, mosquitos, a náusea no ar
dona libânia nasceu
aos 94 anos
festa no lado de lá ("lado de lá" pode ser
uma metáfora, ou eufemismo)
a manjedoura coberta de flores mortas
do lado de cá
sol pálido sob o sábado
seguro o corrimão da escada rolante
a porta de aço ganhou uma tatuagem nessa madrugada
o cachorro buzina no colo do dono
bebe vento à janela
teve um roubo aqui ao lado
a polícia prendeu o primeiro que passava na rua
cena sem sabor de sábado
não faz frio nem nada na manhã cinza
agora chove, faíscas de água
que se apagam antes de bater no chão
a vizinha apresenta "meu novo futuro esposo"
à irmã, sorriem, cúmplices
dizem que na terceira ninguém mais erra
a tarde anda, tem feijoada, tem que lavar o carro
a mulher compra um presente para o marido
outro para o filho
e mais um para o filho do filho
e também para o marido
do filho
dou um mimo pra ela
e fico com um pouco do seu orgulho
a noite vem, tem casamento, tem pizza
baile, festa, flertes, cumprimentos
a noite anda mais rápido que a tarde
que é mais célere que a manhã
o futuro vem, o passado vem
só, o presente passa
Haicaixambu - Big bang de borboletas ao sol
O haicai é uma forma poética japonesa que chegou ao Brasil em 1908 a bordo do navio Kassato Maru, junto com os primeiros imigrantes. Logo os tercetos de 5, 7 e 5 sílabas tonais se popularizaram na nova terra e encontraram solo fértil para novas experimentações linguísticas.
Esse amálgama com a brasilidade permitiu texturas, ritmos e métricas inusitadas e legou nomes como Guilherme de Almeida, Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Álvaro Posselt e Claudia González, da qual extraio este exemplar:
volta às aulas –
aluno atento à geometria
da borboleta
Hoje, o haicai está estabelecido entre os textos canônicos da poesia brasileira. E como tal, continua a despertar aficcionados que se dispõem a burilá-lo como uma pedra a ser lapidada até que se torne uma joia rara e por isso mesmo, preciosa. É nessa seara que encontramos o escritor Maciel Machado, da cidade de Caxambu, no sul mineiro.
Septuagenário, Machado acaba de lançar seu primeiro livro, Haicaixambu, depois de um largo tempo a estudar e praticar essa forma poética singela e insinuante (antes tinha publicado um plaquete intitulado HaiMac - Uma forma do velho Maciel ver a vida…). Se o título dessa estreia é um crossover entre as palavras “haicai” e “Caxambu”, uma faísca de estranhamento e de delírio lírico ressalta a vocação semiológica da capa do livro. Sua composição é uma trama reveladora da práxis do autor: a foto com folhas com folhas ocres repousando sobre um fundo acinzentado, em contraste acentuado pelo tom férreo. E se no contexto inicial - a capa nos faz deduzir - o haicai preconiza contemplações diante de um uma natureza onde o autor se esmera em flagrar e ampliar sensações:
Jardim ressecado
bastou um pouco d’água
o cravo sorriu todo molhado (P. 25),
isso realça a contradição irônica do homem e o seu meio social:
Na bancada fétida
peixe já sem vísceras
o peixeiro fuma (p. 12),
fazendo da brevidade desses versos a fugacidade de uma vida lógica. Aqui, o humor transcende a sobriedade poética com uma artesania informal inspirada no cotidiano. Machado não está preocupado com a obediência cega à tradição, mas injetar humor na paisagem e nas engrenagens dos eventos.
Passam pela cabeça todo dia
ideias, tristezas e alegrias
quantas viram poesia? (p. 74)
Se os haicais são constelações poéticas cujo pilar é a concisão e a simplicidade em três versos, em Haicaixambu, Maciel Machado captura instantâneos dispostos no mundo e os faz vibrar com luzes, cores e ritmos próprios, aliados a uma sagacidade natural e a experiência de vida viajada e fruída, da qual somos artífices e espectadores. Como deduz Girlene Verly, na apurada apresentação do livro, o humor alegre e leve, também contracena com um autor arguto, que fala de amor, sonhos, saudades diversas e uma perfeita integração à natureza. Afinal, como nos diz o poeta em sua extasia (pré? pós?) adolescente,
Não tem problema
o que sobrar
vira poema (P.33).
Depois de Cora Coralina, Lia de Itamaracá, Cartola, Ivone Lara, Clementina de Jesus e Helena Meirelles, não deveríamos nos surpreender a descoberta de atributos em idades avançadas, mas Maciel Machado não é uma descoberta e sim a percepção de que o talento eclode no exato momento em que a energia da estrela encontra o pavio ávido da centelha. Quando isso acontece, é o big bang de borboletas ao sol.
Serviço
Título: Haicaixambu
Autor: Maciel Machado
Páginas: 84
Edição: 2025 (1a.)
Editora: IS (Caxambu, MG)
Fotos: do autor
Foto do autor: Antonio de Souza