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21.10.14

Resenha - livro "Mosaico de Rancores" (Márcia Barbieri)



A autora e sua cria

"Meu corpo é um mosaico incoerente de formas geométricas duvidosas, fórmulas fáceis somando rancores." A literatura é rica em exemplos de títulos que enfeixam e enfeitam aquilo que foi construído na trama urdida nas páginas interiores. Desde os títulos sintéticos de Camus, como "O Estrangeiro", "A Peste" e "A Queda", até o  auspício atingido por João Cabral de Melo Neto em "Morte e Vida Severina" (título que é, ele próprio, um poema). Seja como for, a ficcionista Márcia Barbiéri atinge, em sua novela "Mosaico de Rancores", um refinamento que a coloca fácil fácil no panteão das mestras que fazem da letra alquimia e arte, com a literatura feita em língua portuguesa.
Escrito como se estivesse compondo um grande mural de pequenos ladrilhos, "Mosaico" traz também indicações de uma fastidiosa luta interior, uma rinha que me levou às pessoas que lutam no silêncio contra os males da depressão. Logo à introdução, Malu, a personagem principal, escreve em primeira pessoa, que é cega: "Os dias passam e esse acontecimento voltam aos meus olhos já cegos". Li a obra toda para ter certeza se sua cegueira era física, existencial, metafísica ou uma metáfora elaboradíssima. E, confesso, não tenho a resposta definitiva. E só quando conheci os argumentos de Lúcio, seu namorado/rival (e fotógrafo), tive uma pálida introdução às nuances que entremearam o enredo.
Eis, aliás, o enredo: trancada em seu mundo, Malu vive às turras com o mundo, principalmente com Lúcio. Nesse rengue-rengue monocórdico, segue o curso dos dias num embate cotidiano contra a opressão dos pensamentos que a assaltam. A síntese da sensação desses dias só é suportável pelas mãos macias e mornas da lascívia. É através  do choque corporal que Malu se relaciona com o meio, as coisas, o mundo. Na ausência da visão, é nos outros sentidos - principalmente o tato - que se desenvolve a familiaridade de Malu com o corpo, logo, com a vida.
Vem o inesperado: surge Luís, irmão do namorido. O cunhado irá dar novo sentido ao sentido físico de suas afetividades. Com ele, irá alcançar os píncaros de uma glória jamais atingida. O êxtase torna-se troféu, a brindar a relação menos ruim. Ela aprende a voar acima dos riscos dos dias, usa o sarcasmo para sustentar sua falta de prudência: "Pedras fazem ninhos entre meus rins", desdenha. Ou "O que um Deus faz? Olha o mundo de cima e se vangloria de sua criação imperfeita", despista, filosofando.
O texto sofre uma invertida. Sai ela da primeira pessoa, entra ele. Com Lúcio  protagonista, as elucubrações, antes secas, guturais e retilíneas, passam outro mundo, agora da evasão, justificativa quadrada. Os segundos duram mais. As digressões do homem entram na mesma rota da mulher, em sentido contrário. Como ele apregoa, "O início e o fim se misturam numa lambida longa".
Os caminhos que se bifurcam levam ao choque, ou melhor, à hipótese de choque. Não há choque. De lado a lado, apenas uma enorme colcha, um extenso mosaico de rancores. Acertando o melhor que se pode ofertar sobre o contrário, alguém sofisma "Os cegos enxergam no escuro, foi a  única cosia que pude constatar". Quem? Lúcio? Malu?
Com vocês, o labirinto... ou os estilhaços de um espelho.



Mosaico de Rancores - Márcia Barbieri 
Terracota, 2013, 172 p.
Escobar Franelas

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