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25.12.16

Entrevista: TÂNIA GABRIELLI-POHLMANN (Arte, psiquiatria, comunicação) - Alemanha


No fim de 1998, por conta do lançamento de meu primeiro livro, hardrockcorenroll - poemas, me aproximei de jornalistas, para que tivessem acesso à minha obra. Foi nesse contexto que em algum momento soube que a paulistaníssima Tânia Gabrielli-Pohlmann tinha na Alemanha um programa de rádio voltado para a cultura brasileira, assim como um portal com notícias do Brasil para o público germânico. Sem pestanejar, enviei a ela um exemplar e logo recebi uma devolutiva muito carinhosa. Iniciamos uma diálogo que se estende até hoje e que me proporcionou a seguir a oportunidade de conceder o primeiro depoimento falando de minha carreira então iniciante. Passei a abastecê-la, sempre que possível, com notícias, livros e cd, contemplando a produção efervescente que rola no Brasil. Quando, em 2011, lancei o romance Antes de Evanescer, a generosa Tânia novamente se antecipou e entrevistou-me ao vivo para seu programa Revista Viva.
Foi assim que nossas conversas foram se emendando uma na outra e estreitamos nossa amizade. Nas conversas, porém, eu nunca conseguia elucidar completamente o enigma Tânia Gabrielli-Pohlmann, em razão de suas múltiplas atividades. Pensei então em entrevistá-la, como contrapartida para sua delicada e dedicada atenção a mim, mas também para entender esse furacão que esquenta com tanta beleza e inteligência as terras frias da Europa. Durante quase dois meses, formulei perguntas que ela foi respondendo conforme sua disponibilidade. E o resultado é este diálogo publicado abaixo. 
Espero que todas apreciem. Degustem-na

1) Gostaria de principiar nossa conversa com um pouco de sua história:‭ ‬infância,‭ ‬adolescência e juventude.‭ ‬Ou então,‭ ‬o‭ "‬período brasileiro‭"‬.‭ ‬Pode ser assim‭?
Ih,‭ ‬pode sentar,‭ ‬porque tem história...‭ ‬Vou tentar resumir,‭ ‬certo‭?
Numa quarta-feira,‭ ‬mais ou menos às três e meia da matina,‭ ‬tirei minha mãe da cama e lá foi ela à maternidade.‭ ‬Nasci às‭ ‬04:20‭ ‬horas do dia‭ ‬19‭ ‬de maio de‭ ‬1965.‭ ‬Nossa‭! ‬Há mais de 51 anos‭! ‬Lá se foi,‭ ‬já,‭ ‬mais de meia pizza...
Nasci numa maternidade bem próxima ao Museu do Ipiranga‭ ‬– e já cheguei‭  ‬aos berros‭ (‬seria influência dos fatores externos‭? ‬Casa do Grito...‭ ‬Liberdade...‭).
Passei minha infância e adolescência na região da Vila Prudente,‭ ‬Alto da Mooca,‭ ‬Mooca.‭ ‬Família italiana de ambas as partes.‭ ‬Meu avô paterno era anarquista e teve de fugir da I Guerra.‭ ‬Levou esposa e treze filhos,‭ ‬exatamente como meus avós maternos.‭ ‬Família grande,‭ ‬barulhenta e sempre regada pelo violino‭ ‬do Tio Nicolino,‭ ‬que morria de saudade da Bella Itália...‭ ‬Hoje compreendo bem o que ele sentia por Napoli...‭
Meus pais nasceram na mesma região,‭ ‬ambos em abril de‭ ‬1933.‭ ‬Anos difíceis,‭ ‬em que muitos de seus irmãos nem chegaram ao Brasil.‭ ‬Minha avó materna‭ ‬tinha um tesouro,‭ ‬além dos filhos:‭ ‬um caderno de receitas escondido no vestido.‭ ‬Receitas que acabei trazendo‭ “‬de volta à Europa‭”‬.‭
Minhas lembranças de infância são impregnadas por aromas e cantorias,‭ ‬gritarias e muitas risadas,‭ ‬apesar das dificuldades imensas de famílias de migrantes que não tinham liberdade de expressão.‭ ‬E que tiveram de abandonar tudo para começar uma vida absolutamente zerada.‭ ‬Aprendi a focar o necessário,‭ ‬a simplicidade e a partilha.‭ ‬Até hoje não consigo receber um bombom de presente‭ ‬e não compartilhá-lo.‭ ‬Não tem o mesmo sabor.‭
Uma‭ ‬ intensa alegria‭ ‬ em minha infância foi a descoberta da leitura‭ ‬-‭ ‬ o maior passaporte para a liberdade que um ser humano de quatro anos,‭ ‬com dentes de leite faltantes,‭ ‬mas com uma sede imensa de desvendar o segredo das letras agrupadas,‭ ‬formando palavras.‭ ‬Lembro-me exatamente deste momento e da certeza de que‭ “‬aquilo‭”‬ era,‭ ‬sim,‭ “‬a‭”‬ descoberta.‭ ‬Só no ano seguinte consegui convencer minha mãe a me matricular na escola pública do bairro‭ (‬aliás,‭ ‬num período em‭ ‬que a escola pública era de qualidade‭)‬.‭ ‬Como sou teimosa,‭ ‬persisti até que minha mãe não suportasse mais.‭ ‬Fomos à escola e lá não larguei a calça do diretor,‭ ‬como que agarrada à maior conquista de minha vidinha.‭ ‬Teimosa,‭ ‬persistente.‭ ‬Venci o diretor pelo cansaço e talvez por não querer ver rasgada sua calça...‭ ‬Enfim,‭ ‬lá fui eu para a escola,‭ ‬que se tornou‭ ‬meu local amado,‭ ‬até hoje.
Descoberto o mecanismo da leitura,‭ ‬como os bombons,‭ ‬queria que todo mundo pudesse ler.‭ ‬Ali nascia o que se tornou uma de minhas‭ ‬maiores preocupações e ocupações voluntárias.‭ ‬Minha mãe era kardecista e em seu grupo havia vários projetos de assistência social aos moradores da favela de Vila Prudente‭ ‬e‭ ‬em outras cidades do Estado de São Paulo.‭ ‬Regiões carentes,‭ ‬distantes,‭ ‬isoladas.‭ ‬Foi nesse contexto que comecei a oferecer‭ “‬cursos‭”‬ de alfabetização para adultos.‭ (‬Continuo na semeadura por aqui...‭)‬.‭ ‬Ali houve o contato com Paulo Freire‭ (‬sem saber,‭ ‬à época,‭ ‬de quem se tratava...‭)‬.‭ ‬Aos seis anos,‭ ‬jamais imaginaria,‭ ‬mas foi o início de tudo.‭ ‬Meu objetivo era ensinar aos bóias-frias a leitura e a escrita.‭ ‬Suas mãos,‭ ‬no entanto,‭ ‬não teriam muita facilidade em trabalhar com lápis ou canetas.‭ ‬Resolvi transformar o chão de terra em folha de papel e os cabos de suas enxadas,‭ ‬seus primeiros lápis.‭ ‬Os primeiros movimentos,‭ ‬depois,‭ ‬passariam aos cabos de vassouras,‭ ‬até que pudessem manusear lápis e canetas sobre folhas de papel.‭ ‬A alegria que senti ao ouvir um dos alunos,‭ ‬ao ver seu nome escrito por sua própria mão e poder lê-lo,‭ ‬ainda mora em mim.‭ ‬Ele simplesmente abriu um sorriso e disse:‭ “‬Agora consigo me ver‭”‬.‭
A adolescência foi regada a muita música,‭ ‬dança,‭ ‬esporte.‭ ‬O vôlei teria sido uma carreira,‭ ‬não tivesse começado a trabalhar cedo.‭ ‬E havia a alfabetização...‭ ‬E as aulas particulares como capital inicial para poder bancar a escola.‭
Aos‭ ‬14‭ ‬anos cursei o segundo grau técnico.‭ ‬Uma novidade da época:‭ ‬Tradutor e Intérprete.‭ ‬No decorrer do último ano me preparei para a FUVEST.‭ ‬De susto,‭ ‬passei e me deparei,‭ ‬aos‭ ‬17‭ ‬anos,‭ ‬com a USP num período em que ainda não havia o prédio de Letras.‭ ‬Tínhamos aulas na Colméia do CRUSP,‭ ‬nos esqueletos de prédios ou ao ar livre.‭ ‬Ingressei exatamente no semestre de despedida de Décio Pignatari.‭ ‬Ainda pude me deliciar,‭ ‬também,‭ ‬com alguns semestres de Literatura Brasileira sob os pensamentos de Alfredo Bosi‭ ‬en persona.‭
Entre o final do que chamávamos Segundo Grau e o início da universidade,‭ ‬perdi o emprego.‭ ‬Intensivei as aulas particulares e passei a fazer revisão de textos,‭ ‬traduções e a pintar camisetas para vender na‭ ‬USP.‭ ‬Naquele mesmo semestre acontecia a Bienal do Livro,‭ ‬onde apanhei uma revista gratuita da Editora Brasiliense.‭ ‬Nesta revista havia vinte anúncios de publicações alternativas de literatura e autores alternativos.‭ ‬Entrei em contato com todos eles.‭ ‬Havia‭ ‬um anúncio de um concurso literário‭ (‬de poesias‭)‬,‭ ‬lá no Rio Grande do Sul,‭ ‬um Estado pelo qual sempre fui apaixonada.‭ ‬Por insistência de amigos escrevi um poeminha e mandei,‭ ‬só por diversão.‭ ‬E fui classificada.‭ ‬Foi a primeira publicação de algo de minha autoria.‭ ‬Enquanto isto,‭ ‬os alternativos chegavam,‭ ‬os contatos se multiplicavam.‭ ‬Acabei lançando o POEMAGIA,‭ ‬que teve início com‭ ‬20‭ ‬cópias xerocadas e terminou com tiragem de mais de cinco mil exemplares.‭ ‬Depois lancei uma revista que reunia todos os estilos‭ ‬de pensamento,‭ ‬literatura,‭ ‬crenças e filosofia.‭ ‬Já no período do POEMAGIA lancei alguns concursos literários e respectivas antologias.‭ ‬Foi quando decidi manter distância pública da política,‭ ‬já que era bastante procurada por candidatos que talvez jamais tivessem investido seu tempo em leitura.‭ ‬Em virtude dos projetos de alfabetização também fui muito perseguida por políticos,‭ ‬cujo capital não deveria descobrir seu próprio cérebro...‭ ‬Foi barra.‭
Era fim dos anos oitenta,‭ ‬início dos noventa,‭ ‬quando tive a oportunidade de conviver com profissionais de diversas áreas.‭ ‬Profissionais da medicina,‭ ‬da engenharia,‭ ‬da pedagogia,‭ ‬entre muitos outros,‭ ‬foram laboratórios do que hoje chamo de‭ “‬métodos de pensares‭”‬.‭ ‬Isto tudo regado a muita italianada,‭ ‬sotaques variados da vizinhança,‭ ‬poetas,‭ ‬contistas,‭ ‬músicos.‭ ‬E os sustos na universidade que me parecia gigantesca demais.‭ ‬Foi um período duro para estudantes.‭ ‬A gente dependia de um agente livreiro que contrabandeava dicionários estrangeiros‭ ‬– coisa rara e por demais cara...‭
Enfim,‭ ‬o ensino sempre acompanhou meus passos.‭ ‬E o aprendizado infindável.‭ ‬Inclusive aqui...‭

"Enquanto tiver um pouco de visão,‭ ‬continuarei pesquisando e aplicando o que puder ajudar a fazer de nosso mundo algo mais suportável a todos.‭"

Dezembro de‭ ‬1999.‭ ‬Dia quatro.‭ ‬Cheguei à Alemanha numa tarde gelada.‭ ‬A partir daí,‭ ‬muitas mudanças e choques culturais...‭
Em janeiro de‭ ‬2000‭ ‬fui convidada a participar de um projeto do Ministério da Educação para a realização  um programa de rádio.‭ ‬O objetivo era reunir‭ ‬35‭ ‬representantes de países diferentes,‭ ‬que trariam a música e um pouco da cultura de seus países de origem.‭ ‬Foi então que,‭ ‬ao apresentarmos o‭ ‬programa pela osradio,‭ ‬fui convidada pela diretoria desta rádio a apresentar um programa sobre a cultura brasileira.‭ ‬Seriam duas horas de duração,‭ ‬sem intervalos comerciais.‭ ‬Aceitei,‭ ‬sob as condições de que uma de suas duas horas fosse dedicada à cultura‭ ‬mundial,‭  ‬e o programa inteiro seria em alemão,‭ ‬salvo em casos de entrevistas com brasileiros,‭ ‬que teriam tradução simultânea.‭ ‬Assim nasceu o programa Revista Viva,‭ ‬que levo ao ar,‭ ‬ao vivo,‭ ‬até hoje.‭ ‬E cuja transmissão é repetida pela Radio Weser,‭ ‬em outro‭ ‬Estado alemão,‭ ‬a convite,‭ ‬também,‭ ‬da diretoria da rádio.‭
O Revista Viva estava no ar havia mais ou menos um ano.‭ ‬A diretoria da osradio solicitou mais um programa,‭ ‬também de duas horas,‭ ‬em outro horário.‭ ‬Nascia a dupla‭ “‬Brasil com S‭”‬,‭ ‬de uma hora,‭ ‬e o‭ “‬Musika‭ ‬– die schönste Sprache der Welt‭”‬,‭ ‬de uma hora,‭ ‬produzido e apresentado por Clemens Maria Pohlmann,‭ ‬que,‭ ‬por sua vez,‭ ‬apresenta a segunda hora do Revista Viva até hoje.‭
Além do rádio,‭ ‬já lecionava português na Escola‭  ‬Superior Livre da região e de outras cidades,‭ ‬até que a Escola Superior de Ciências Econômicas daqui me convidou para assumir a docência oficial de língua portuguesa,‭ ‬a cultura e história do Brasil.‭ ‬Assumi há quase dez anos e continuo com este trabalho paralelo,‭ ‬onde também aproveito para divulgar a produção cultural atual em todas as‭ áreas.‭ ‬O curso envolve estudantes de todas as outras faculdades desta escola superior,‭ ‬especialmente das Faculdades de Música,‭ ‬Gestão Internacional,‭ ‬Agropecuária,‭ ‬Arquitetura e Paisagismo etc.‭
Minha atividade profissional,‭ ‬além das descritas acima‭ (‬sendo que o rádio permanece um hobby‭)‬,‭ ‬no entanto,‭ ‬abrange a área da Psiquiatria,‭ ‬onde trabalho na estruturação diária de pessoas com distúrbios psíquicos e dependências de toda ordem.‭ ‬Paralelamente,‭ ‬retomei os estudos de Psicologia,‭ ‬após fazer uma especialização na área de Nutrição Multifuncional.‭
Enfim,‭ ‬trabalho não falta...‭ ‬Atualmente preparo um livro sobre os temas abordados em meus workshops intitulados‭ “‬Daheim in meinen Körpern‭”‬,‭ ‬algo como‭ “‬Em casa em meus corpos‭”‬.‭ ‬Um trabalho que abrange a alimentação de toda espécie:‭ ‬propriamente dita,‭ ‬preventiva,‭ ‬terapêutica,‭ ‬emocional,‭ ‬espiritual e social.‭ ‬Pretendo levar estes workshops para o Brasil também.‭ ‬Um trabalho que tenho estruturado em parceria com o conceito que desenvolvi no âmbito do Psicodrama,‭ ‬chamado‭ “‬Tela Estrutural‭”‬,‭ ‬que visa a saúde integral‭ ‬– especialmente através do equilíbrio psicológico.‭
O que mais tenho para contar‭? ‬De minha constante saudade do Brasil,‭ ‬de minha paixão por gatos e felinos afins,‭ ‬por gente,‭ ‬por pesquisas...‭ ‬Apesar da reduzidíssima visão,‭ ‬que me impede,‭ ‬muitas vezes,‭ ‬de estar intensivamente nas mídias sociais,‭ ‬não desisto de aprimorar meus trabalhos.‭ ‬Enquanto tiver um pouco de visão,‭ ‬continuarei pesquisando e aplicando o que puder ajudar a fazer de nosso mundo algo mais suportável a todos.‭

‭2) Como foram os primeiros momentos vivenciando uma cultura totalmente diferente daquela que estava formada? 
Foram momentos de choques,‭ ‬muitos choques.‭ ‬Culturais e quetais...‭
O primeiro choque foi perceber que o alemão falado nesta região‭ (‬Baixa Saxônia‭)‬,‭ ‬não tinha muitas semelhanças ao alemão que havia aprendido no Brasil‭ – ‬com professores provindos,‭ ‬na sua maioria,‭ ‬da Bavária...‭ ‬Tive de reaprender a língua e muito rapidamente.‭
Já na primeira semana recebi a notícia oficial do Ministério da Educação a respeito do não reconhecimento de meus estudos‭ (‬Universidade de São Paulo‭)‬.‭ ‬Informação não condizente com a que havia recebido,‭ ‬ainda‭  ‬em São Paulo.‭ ‬Foi como jogar no lixo uma série de lutas que tive de vencer para concluir a universidade...‭  ‬O caminho,‭ ‬naquele momento,‭ ‬foi optar por desvalidar totalmente minha formação,‭ ‬a fim de tentar ingresso à universidade local.‭ ‬Como meu sonho sempre fora estudar Psicologia,‭ ‬abracei a chance.‭ ‬Aliás,‭ ‬não foi um abraço,‭ ‬propriamente dito...‭  ‬Agarrei a chance com unhas,‭ ‬dentes,‭ ‬teimosia e raiva.‭ ‬Passei alguns anos frequentando os cursos chamados de‭ “‬equiparação pedagógica‭”‬,‭ ‬que me dariam uma remota chance a um novo estudo.‭ ‬Disto dependeriam as notas que conseguisse alcançar.‭ ‬Enfim,‭ ‬consegui o NC exigido para Psicologia e ingressei na universidade presencial local.‭ ‬Neste ínterim,‭ ‬candidatei-me à docência de língua portuguesa na faculdade livre.‭ ‬A contratação veio algumas semanas mais tarde,‭ ‬quando a docente em atividade até então abandonaria o cargo.‭ ‬Assumi no dia seguinte e lá permaneci por três anos.‭
Outro choque foi perceber a gigantesca distância literária que se estabeleceu ao longo das décadas.‭ ‬Para minha desilusão e,‭ ‬creio,‭ ‬para a de Goethe e companhia,‭ ‬a literatura atual é banal,‭ ‬sem grandes surpresas possíveis,‭ ‬seja na prosa ou no verso.‭ ‬Ainda assim,‭ ‬em‭ ‬2000‭ ‬participei de um concurso literário,‭ ‬promovido pela Biblioteca Nacional de Autores de Língua Alemã,‭ ‬em Munique.‭ ‬Fui classificada e tive o trabalho publicado na Antologia correspondente aos classificados daquele ano.‭ ‬Mas não me sinto muito motivada a investir muita energia nisto.‭
No âmbito social,‭ ‬mais choques.‭ ‬O Muro de Berlim já havia caído havia algum tempo,‭ ‬mas muros persistem até hoje.‭ ‬E eu não os arranho mais.‭ ‬E nem os importo em mim.‭ ‬A luta pela manutenção de minha dignidade é diária...‭
Nos primeiros anos o que mais me chocava era a falta de informação do povo daqui com relação ao Brasil.‭ ‬Por isto decidi manter o Revista Viva,‭ ‬no qual me dedico a divulgar o que o Brasil tem de melhor,‭ ‬tanto na cultura,‭ ‬como em setores como a própria psiquiatria,‭ ‬medicina em geral,‭ ‬universidades e projetos sociais privados e voluntários.‭ ‬A música é uma referência,‭ ‬por aqui,‭ ‬e foi através dela que consegui abrir os ouvidos do público ao Brasil de forma mais criteriosa.‭ ‬O mesmo tenho feito em minhas aulas.‭
No mais,‭ ‬meu trabalho na Psiquiatria,‭ ‬teve início há treze anos.‭ ‬E este caminho também não é traçado sem choques culturais.‭ ‬Candidatei-me a uma vaga de faxineira num complexo psiquiátrico de moradias monitoradas.‭ ‬Tinha muita curiosidade a respeito do o método alemão terapêutico e esta vaga era uma excelente oportunidade de ver tudo muito de perto e no cotidiano real.‭ ‬O diretor não queria me dar a vaga,‭ ‬por ser para faxina,‭ ‬mas...‭ ‬Assim como minha insistência,‭ ‬lá no finalzinho dos anos‭ ‬60,‭ ‬junto ao diretor da escola pública,‭ ‬apliquei a mesma tática por aqui,‭ ‬até que consegui o trabalho parcial e tive a oportunidade de contatar com diversos diagnósticos e mundos bastante diferentes em interação.‭ ‬Três meses mais tarde,‭ ‬o diretor me comunicou que eu assumiria a coordenação de um setor que deveria ser criado no complexo,‭ ‬dedicado a medidas de estruturação diária e‭ (‬re)integração social de nossos pacientes.‭ ‬Montei o departamento,‭ ‬onde desenvolvo vários projetos até hoje.‭
Alguns meses após ter iniciado o trabalho na psiquiatria,‭ ‬fui convidada pela escola superior local a assumir a docência que mencionei no início.‭ ‬Assumi e,‭ ‬o trabalho na Psiquiatria,‭ ‬rádio etc.,‭ ‬meus estudos presenciais já não seriam mais viáveis.‭ ‬Transferi-me à Fernuni,‭ ‬Universidade à Distância,‭ ‬em Hagen,‭ ‬onde tenho dado continuidade,‭ ‬aos trancos e barrancos,‭ ‬aos meus estudos.‭ ‬Que também interrompi para fazer algumas especializações em Psicodrama,‭ ‬PNL,‭ ‬entre outras.‭ ‬A última teve por inspiração alguns pacientes com transtornos alimentares e minha própria saúde.‭ ‬Precisava de uma formação abrangente nas áreas de alimentação e psiquiatria e foi o que fiz.‭ ‬A partir disto,‭ ‬estruturei o conceito que denomino‭ “‬Tela Estrutural‭”‬,‭ ‬que aplico não apenas para distúrbios alimentares,‭ ‬pelo fato de ter me livrado de‭ ‬65‭ ‬quilos e pela demanda do tal‭ “‬segredo‭”‬,‭ ‬mas a todos os aspectos da vida.‭ ‬Ainda neste ano iniciei uma série de workshops e retomei a universidade agora em outubro de‭ ‬2016.‭
As diferenças culturais são imensas.‭ ‬A Alemanha passa por um processo bastante delicado,‭ ‬atualmente,‭ ‬quanto à questão dos refugiados.‭ ‬E nós,‭ ‬estrangeiros que já vivemos há mais tempo por aqui,‭ ‬não ficamos livres dos preconceitos e da hostilidade,‭ ‬embora não seria justo generalizar.‭ ‬O medo é um fator crucial neste cenário,‭ ‬entendo...



3) Para ficarmos, por enquanto na esfera literária, o que você enxerga como proximidade entre a literatura brasileira atual que você conhece e a literatura alemã também atual?
Seria leviano de minha parte expressar uma análise generalizante,‭ ‬já que não tenho acompanhado de forma bem meticulosa a literatura que tem sido produzida atualmente.‭ ‬O que posso dizer,‭ ‬no entanto,‭ ‬é que houve aqui,‭ ‬como aí,‭ ‬uma onda de biografias e romances históricos.‭ ‬Aqui a literatura atual se limita a uma produção dedicada mais claramente ao entretenenimento e não ao exercício de exploração estética,‭ ‬por exemplo.‭ ‬Na poesia alemã este aspecto se faz ainda mais claro.‭ ‬O que chega a irritar na poesia alemã é a linguagem óbvia demais,‭ ‬em detrimento do conteúdo e do teor estético da palavra.No Brasil,‭ ‬excetuadas as obras que me chegam,‭ ‬cuja qualidade literária se manteve ao longo de tantos anos,‭ ‬percebo um crescimento no mercado de obras históricas e filosóficas contemporâneas,‭ ‬o que considero de extrema importância ao desenvolvimento crítico e formativo.‭ ‬Em minha última viagem ao Brasil houve um fato recorrente que me espantou de forma bastante positiva.‭ ‬Em várias oportunidades verifiquei pessoas com livros nas mãos.‭ ‬Pessoas lendo em transportes públicos,‭ ‬por exemplo.‭ ‬Esta é uma semelhança de descrição de hábito.‭ ‬O alemão lê muito‭ ‬– especialmente no inverno,‭ ‬por ser um período em que se sai muito menos frequentemente de casa.‭ ‬O que me tem espantado‭ (‬infelizmente,‭ ‬neste caso,‭ ‬não de forma positiva‭) ‬é a decadência da qualidade das obras que‭ ‬leem.‭ ‬Devo mencionar,‭ ‬no entanto,‭ ‬que os preços em ambos os países são muito discrepantes.‭ ‬O livro,‭ ‬na Alemanha,‭ ‬em geral,‭ ‬tem um preço bem acessível...‭ ‬As livrarias,‭ ‬por aqui,‭ ‬estão sempre‭   ‬movimentadas e a oferta é avassaladora.‭ ‬O mesmo não se pode afirmar no tocante à qualidade literária do que se produz...‭ ‬Sinto muito,‭ ‬mas não me sinto em condições de me aprofundar de maneira mais adequada nesta comparação.‭ ‬Leio demasiadamente em meu dia-a-dia,‭ ‬mas há anos minha leitura tem-se limitado em grande parte‭ ‬à literatura técnica,‭ ‬científica,‭ ‬além da filosofia contemporânea.‭ ‬Os romances,‭ ‬em geral,‭ ‬são traduções comerciais de autores ingleses,‭ ‬norte-americanos entre outros,‭ ‬que não me têm motivado,‭ ‬sob a escassez de tempo na qual vivo.‭

4‭) ‬E quanto às questões políticas,‭ ‬como você vê o momento atual‭? ‬Estamos em franco regresso,‭ ‬ou o caso brasileiro é pontual‭?
Vejo‭ ‬  a situação política de cada país é o reflexo do grau de‭ ‬negligência‭ ‬de cada povo.‭ ‬ Não diria que estamos em franco regresso.‭ ‬Diria que estamos nos conscientizando de nosso papel na sociedade.‭ ‬O povo não pode‭ “‬largar‭”‬ o seu país nas mãos de qualquer um.‭ ‬Você não deixa de observar‭  ‬o trabalho de seus funcionários em sua própria empresa,‭ ‬quando tem consciência de sua própria responsabilidade diante de seu trabalho.‭

5) O que é o conceito‭ “‬Tela Estrutural‭”?
‭“‬Tela Estrutural‭”‬ é uma dinâmica de exteriorização de conteúdos subconscientes que,‭ ‬na maioria dos casos,‭ ‬somatizam e nos causam os mais diversos sofrimentos.‭ ‬Baseio a metodologia nos conceitos do psicodrama em interação com elementos de várias abordagens psicoterapêuticas e acompanhadas de conceitos neuropsicológicos,‭ ‬através dos quais se pode chegar à identificação da causa de determinadas enfermidades e de inúmeros transtornos.‭
Vale ressaltar que não apenas o cliente é beneficiado com o método,‭ ‬como também os participantes da dinâmica,‭ ‬que funcionam como telas nas quais se manifestam os sintomas,‭ ‬as‭ “‬imagens‭”‬ inesperadas,‭ ‬com as quais os agentes‭ (“‬telas‭”‬) geralmente encontram-se igualmente em conflito.‭ ‬Trata-se,‭ ‬assim,‭ ‬de um processo eficiente a todos os presentes no grupo.‭
O conceito de‭ “‬tela estrutural‭”‬ está detalhadamente descrito no site que em breve disponibilizarei.‭



‭6) Você disse numa resposta anterior que a literatura alemã, para sua surpresa, a "‬literatura atual é banal,‭ ‬sem grandes surpresas possíveis”. Isso parece ser sintomático tanto na Alemanha quanto no Brasil e em outros lugares. O que acontece no mundo agora? Estamos vivendo a superficialização das relações, das ideias, dos questionamentos?
Nosso ritmo de vida atual nos bombardeia com estímulos externos e constantes de tal forma,‭ ‬que a maioria das pessoas tem deixado de lado o contato com o seu próprio universo criativo.‭ ‬Tudo o que precisamos saber está pronto,‭ ‬em alguma página virtual.‭ ‬Vamos lá e buscamos a informação.‭ ‬O restante,‭ ‬aquilo que poderíamos desenvolver intelectualmente,‭ ‬fica amortecido pela urgência de informações colhidas às pressas.‭ ‬Mergulhamos numa sociedade líquida,‭ ‬na esperança de nos reencontrarmos em alguma esquina de nosso ego desesperado.‭
No entanto,‭ ‬penso que este processo de superficialização nos socorre um pouco de algo que defino como‭ “‬medo de si mesmo‭”‬.‭ ‬O processo criativo é infinitamente abundante sob a condição de mergulhos em nosso potencial interno.‭ ‬Fugimos deste universo interno,‭ ‬talvez de forma predominantemente inconsciente,‭ ‬por duvidarmos de nossa capacidade de nos descobrirmos imperfeitos.‭ ‬Fugimos daquilo que é nada mais‭ ‬que natural.‭ ‬Fugimos da descoberta de que somos seres incógnitos em vários aspectos.‭ ‬Permanecemos na superfície para nossa própria proteção.‭ ‬E recorremos aos relacionamentos que apenas se limitem a nos fornecerem uma certa medida do quanto somos‭ “‬adequados‭”‬ a este mundo líquido.‭ ‬Esta superficialidade reflete‭ ‬nossa preguiça criativa ou nosso medo de uma evidência incômoda‭? ‬O medo de nos assumirmos únicos,‭ ‬diferentes,‭ ‬possíveis,‭ ‬nos acomoda e nos acovarda‭?‬ Lembro-me de reações que provoquei em alguns trabalhos meus,‭ ‬lá no início dos anos‭ ‬80.‭ ‬Os leitores,‭ ‬chocados,‭ ‬não se preocupavam em internalizar determinados conceitos contidos na estética da qual me servia.‭ ‬O choque semântico os prendia a uma necessidade de se protegerem de minha ousadia.‭ ‬Ousadia que nada mais era do que um convite à revisão de nosso comportamento frente a nossas necessidades humanas.‭ ‬Certamente as reações teriam sido ainda mais violentas nos dias atuais.‭

"Nossa geração praticamente não teve tempo de se adaptar a tudo o que se tem apresentado em nossa vida.‭"

A convivência,‭ ‬hoje,‭ ‬se torna muitas vezes insuportável diante de nosso quase estado de letargia.‭ ‬Por outro lado,‭ ‬a tentativa de questionamentos nos pode resgatar desta letargia.‭ ‬Se tomo a iniciativa de perguntar àquele que considero meu contrário,‭ ‬de saber como ele pensa,‭ ‬sente,‭ ‬ama ou odeia,‭ ‬disponho-me a aprender outras perspectivas com‭ ‬as quais‭ ‬posso até continuar discordando,‭ ‬mas aprendo a definir os limites do que poderia considerar‭ “‬a verdade‭”‬.‭ ‬Aos poucos tendemos a ampliar nossa capacidade de aprender o mundo do outro além de dicotomias.‭ ‬Ou nos posicionamos à margem de tudo e pagamos‭ ‬o preço de nossa arrogância.‭ ‬E adoecemos mais e mais.‭ ‬E mais cedo.‭
Minha percepção,‭ ‬no entanto,‭ ‬não significa que considere o mundo atual‭ “‬um mundo perdido‭”‬,‭  ‬como se tem ouvido muito frequentemente.‭ ‬Simplesmente passamos por um processo de mutações,‭ ‬de revisões de valores e de posicionamentos habituais.‭ ‬E aí reconheço,‭ ‬em meu cotidiano profissional,‭ ‬o quanto o hábito nos capturou e nos tem adoecido cada vez mais.‭ ‬Sua pergunta reflete bem minha intuição a respeito de nossa disposição a reflexões sobre nós‭ ‬mesmos e sobre nossa interação neste mundo atual,‭ ‬que nos é tão desconhecido.‭
Nossa geração praticamente não teve tempo de se adaptar a tudo o que se tem apresentado em nossa vida.‭ ‬E esta geração que vemos crescer num cenário completamente acelerado também ainda não teve tempo de descobrir o que havia antes dela.‭ ‬E nos encontramos neste contexto,‭ ‬neste beco com saída,‭ ‬ feito índio em primeiro contato com o branco.‭ ‬Este contraste apenas se repete,‭ ‬naturalmente sob outros cenários...‭ ‬Um primeiro choque,‭ ‬um olhar mais demorado,‭ ‬uma tentativa de contato.‭ ‬A interação é construída aos poucos.‭ ‬Também sob este aspecto vejo a história em repetição.‭ ‬Sob outro cenário,‭ ‬repito.‭
Vejo este momento como uma riquíssima oportunidade de aprendizados multilaterais.‭ ‬Quem tiver coragem suficiente de admitir seus medos,‭ ‬limites e solidões de si,‭ ‬terá mais condições de redescobrir a infinitude criativa.‭

7) O que você tem planejado para o futuro próximo?
Dar prosseguimento ao livro e aos vídeos referentes aos meus workshops,‭ ‬continuar meus trabalhos por aqui e levá-los ao Brasil,‭ ‬seguir com os estudos e com o Revista Viva e a divulgação da cultura brasileira.‭
No mais,‭ ‬planos geralmente encontram surpresas.‭ ‬Deixo-me surpreender.‭

8) Alguma pergunta que você gostaria que eu tivesse formulado? Algum tema que queria abordar? Se sim, por favor, faça e a seguir responda. Obrigado pelo carinho e interação nesse diálogo? 
Obrigada pela adorável caminhada por alamedas do passado e do momento atual. Que possamos continuar em parcerias futuras e frutíferas. Foi realmente um grande prazer e uma honra. Você sabe o quanto o admiro e respeito. Sejamos, todos, insistentemente teimosos. E continuemos nossos passos. Flores.

* Envie sua obra para Tânia Gabrielli-Pohlmann
Hesselkamp 21
49088 Osnabrueck
Deutschland (Alemanha)

Texto: EscobarFranelas
Fotos: arquivo TGP (Facebook)
Foto 2: no estúdio da osradio, com seu marido Clémens

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