CORPO SANTO
Sempre que ela ia lá em casa, a gente acabava dormindo junto. E sempre que a gente dormia junto, ela se enrolava no meu corpo.
Acho que nunca conseguirei explicar pra você como é a sensação exata que sinto, que um homem sente, quando dois seios roçam seu peito. Ou então uma bunda empinada, comprimida contra você, em atrito suave numa noite serena, embalada pela música de uma respiração sossegada, fluida, cansada...
Mas o que eu ia dizendo é que ela, de vez em quando, dormia lá em casa. Na minha cama.
O que eu mais gostava era quando ela saía do banho. O quarto era contíguo ao lavabo, com a porta espreguiçando aos pés da cama. E quando ela abria a porta, aquele vapor de alfazema morna debruçava sobre o espaço. Nessas horas, eu já tinha apagado todas as luzes, deixando apenas dois abajures ligados, um em cima da escrivaninha e outro ao lado da cama, numa armação leve, em ferro, argila e arames retorcidos. A silhueta dela invadia a penumbra, na neblina do quarto.
Causava-me um certo terror o fato dela não ter pudores comigo. Deixava cair a toalha num gesto tão natural, que me custava acreditar que assim o fosse. Ficava sempre com a impressão de que era um ensaio teatral bem calculado, amalgamando frenesi e sutileza na mesma obscenidade gestual. Os seus seios saltavam em perfil; era o meu deleite. O que mais gostava, contudo, era observar suas pernas. Esguias e rígidas, sustentavam o corpo como um pássaro pronto para o vôo. Uma penugem luzidia a envolvia, das coxas ao tornozelo, subpondo-se a uma borboleta pintada em rosa e preto, que abraçava em cor e luminância toda a região maleolar. E ela ficava ali, nesse exercício de exibição, por infinitos minutos. Primeiro, enchia a palma da mão com aquele licor de deusas e começava a envernizar cada curva, cada linha daquele horizonte que vibrava na exata distância entre minhas retinas e a fantasia.
Eu? Eu ficava ali, feito bicho mudo, acuado, no desvelo daquele momento que me parecia tão curto, tão longo, conforme a história que inventava para nós dois. Ela não sabia - eu acho - que, ficando ali, daquele jeito, amassava, afagava, apertava meu ego, enquanto eu ofegava, em riste, suando frio, na bênção daquela hora úmida, talvez a única em que descortinava uma felicidade absoluta, por não compreendê-la completamente.
Depois de besuntar todo os recôncavos, dava voltas em torno de si, com as mãos orquestrando uma regência tirana, sôfrega, muda. Apreciava toda a disposição do espelho em ornamentar o gesto como um impulso de ventos boreais. Mais que uma obsolescência das horas, o que contemplava era uma religião que zelava veladamente pela contenção dos impulsos. A pele enegrecida na penumbra era mais que um corpo para o sacrifício de qualquer uma das partes. Era sim a contramão do raciocínio, um signo único para o esforço da libertação. Dessas gostosas ternuras que fazemos com nosso pensamento quando ficamos olhando sem pressa para as nuvens que se deslocam. Para o nada. Era assim que ficava, enquanto o corpo cansado das horas, reclamava dessa catatonia nobre da alma.
Por fim, depois de prestar o culto ao corpo, ela vinha. Parecia uma sereia alada, uma fada, que resvalava de leve na minha loucura, enquanto sorria, sorria só pra mim. E eu, tão aturdido ficava, que não retribuía.
Ela então trepava na cama, puxava lençóis, cobertores, travesseiros, peles, tudo; fazia o que tinha que ser feito, desfazia e fazia tudo de novo. E então eu sorria. Olhava. O lustre, pendendo no teto, cintilava sobre as feições abobalhadas que sulcavam meu rosto. O espelho do canto não omitia nenhum sinal. E aquele movimento, então... louco, meio caracol, meio centopéia. Tentava fitar sugar chupar os olhos dela, a cara dela, as palavras dela... e justamente aí tinha vontade de parar. Parar tudo. Plantar uma rosa entre suas pernas. Ficava tão perplexo com aquele rosto crispado de tesão, que tinha pequenos mimos, vontades maternais. Acariciá-lo com o dorso das mãos. Deixar escorrer uma gota de vinho entre os seios. Sugá-la quando baixasse à púbis.
Diminuía então ritmo da minha dança para tentar acompanhar a música de meu pensamento. O frenesi dos seus quadris, contudo, exigiam de mim um outro compasso. Havia naquele estupor uma catarse. Uma centelha inflamada que era como uma sinfonia atonal um balé sem fuga um ritual sem prédicas. E um dia toda aquela nota dissonante me conduziria a um salto a um olhar felino a um desmembramento do corpo... como se a alma não mais o suportasse e quisesse dividi-lo em tantos outros, até que eu não mais existisse.
Geralmente aí, nesse exato momento do pensamento, eu retrocedia todos os músculos de tal forma que a repelia com sutileza indiscreta. E ela ameaçava gritar. Algumas vezes gritava mesmo. E reclamava uma nota nova para prosseguir o baile.
Então nós, corpo e alma, nos encontrávamos novamente. E somávamos tudo e dividíamos tudo: langores sabores amores. Gozávamos os auspícios desse encontro súbito letal gratuito. Ríamos muito, algumas vezes ainda tesos para novos encontros, até o esgotamento que nos esvaziaria de vez. Dormíamos juntos, então.
Quando ela ia embora, eu estava feliz.
Quando ela dormia lá, eu ficava feliz.
Um comentário:
Descobrir, conhecer, sentir, viver o corpo, o amor, o desejo, me parece também não mais suficiente, é preciso pensá-los (e como santo), de modo tal que sejamos livres e felizes, aí então escrever uma outra história, comunicar que há muitas possibidades! É lindo, viu...a gente fica assim, abobalhado..."
Era sim a contramão do raciocínio, um signo único para o esforço da libertação. Dessas gostosas ternuras que fazemos com nosso pensamento quando ficamos olhando sem pressa para as nuvens que se deslocam. Para o nada. Era assim que ficava, enquanto o corpo cansado das horas, reclamava dessa catatonia nobre da alma."
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