* Conheci Ernani Baraldi em junho último, durante a 3ª Invernada (Festival de Inverno no Parque Náutico da Jaguara). Autor do trabalho sintomático do Fotógrafo Urbano e produtor do evento, Ernani revelou-se uma ótima surpresa, pela sutileza e visão de seu trabalho, pela sua consciência de civilidade, além de uma amplitude humana muito fundamentada e de cosmovisão plena. Colhi este depoimento enquanto esperávamos o Alex Antunes, para irmos a uma balada. Como o Alex não vinha (estava dormindo no quarto), a conversa fiada foi avançando madrugada adentro. Aqui, a introdução. Depois virão as outras partes.
(Formação)
Perdi meu pai muito novo, nos mudamos pra Rifaina (nota: cidade do interior de SP) e fui criado pela minha mãe e meu avô. As primeiras influências vieram deles. A presença do meu pai foi muito curta em minha vida. O pouco que lembro dele me remete a uma coisa alegre, de criança que brincou. Ele era motorista de ônibus, chegava em casa sorrindo, brincando com a gente... a memória da gente é isso, a gente vai esquecendo, vai perdendo a imagem se não tem fotografia pra lembrar.
Essa a minha ligação com fotografia, de buscar no passado algo que você não consegue trazer para o presente, só em lembranças.
Tive influências musicais, de caráter, educação e respeito, que acredito boas, por ter sido criado no interior também. A vida da gente no interior é diferente da cidade grande. E não só isso, eu sou de 75, fui adolescente na década de 80, 90. As influências daquela época – não tinha celular nem internet – era mais de família, numa cidade como Rifaina, com 3.500 habitantes. Eu, com 14, 15 anos, brincava de pique-esconde na praça. Era inocente, namorava, mas era tipo pegar na mão, não tinha essa coisa, por exemplo, que hoje a molecada com 13 anos estar se comendo.
(A vida em Rifaina)
Em Rifaina tem internet a rádio. A prefeitura jogou internet, você pega o sinal. Só que eles monopolizaram o negócio. Você tem sinal, mas tem que ter um log in, e ter esse acesso você precisa estar pagando o IPTU. Tem que ir lá, se cadastrar, pegam seus dados – e já serve para politicar isso depois. Fizeram parceria com uma única empresa e fecharam o sinal, ou você tem o sinal da prefeitura ou tem que pagar o Speedy. Se morasse lá eu preferiria pagar o Speedy porque é mais rápido que a internet a rádio.
A molecada hoje tem o acesso, mas no interior as pessoas vivem uma hipnose generalizada. Chega 7, 8 da noite, e não tem ninguém na rua, tá todo mundo assistindo tv, na internet, no Orkut. Mazelas da vida, ficar lá vendo scraps. Transferiram a fofoca da rua para o virtual. É cuidar da vida do outro, sabe? É o ter, não o ser. As pessoas vivem o ter, “eu fui na festa tal”, “eu tenho o carro tal”.
Namorei com uma menina em Rifaina por 10 anos, comecei com 14, terminei com 24, quando fui pra São Paulo. Minha mãe sempre falava, “respeita a filha dos outros, você quer namorar, vai lá conversar com o pai dela, a família dela”, aquela coisa que a geração da minha, de sua mãe, deu. Era mais conservador, namoro em casa, pegar na mãe e olhe lá! Minha mãe acabou passando isso pra mim. Eu respeitava realmente. Claro que você vai ficando adolescente, na puberdade os hormônios começam a fluir, você começa a se masturbar, goza pela primeira vez, surgem pelos, vai tendo aquelas transformações naturais, fisiológicas.
(O primeiro trabalho)
Meu primeiro trabalho foi na cerâmica com meu avô, quando não existia essa represa aqui, tinha o Rio Grande, muita várzea, argila, e ele, filho de imigrantes italianos, veio pra cá trabalhar com isso e se enraizou. Comecei a trabalhar aos 14 anos, carregando tijolo. Só que eu já falava, aquela vozinha interior, “pó, você poderia estar lá em SP”, fotografando. Só que eu sou muito calmo quanto a isso. Porque pra mim as coisas fluíram dessa maneira. Sempre que tive ansiedade de fazer as coisas muito rápido e fui com muita sede ao pote, me ferrei. Hoje estou mais tranqüilo, de ficar de boa...
Então, com 14 anos, a vozinha ficava caraminholando, “você quer isso pra sua vida, carregando tijolo?”, e minha mãe e meu avô martelando, “estuda”, “leia”. Meu avô, por ser filho de italiano, trouxe no sangue as tradições italianas. Para ele, sentar a família junto, almoçar, tomar um cálice de vinho, fazer o nhoque e o macarrão no domingo, era uma tradição muito sadia. Sentar junto, almoçar, olhos nos olhos, essa foi uma parte de vivências da minha infância e juventude que foram positivas demais. Imagina se você cresce levando porrada, cara! As crianças que crescem levando porrada tendem a se marginalizar. Acho muito forte uma família desestruturada. E há vários fatores, econômicos, políticos, de ocupação do solo. Se a gente buscar a antropologia da terra...
(Os primeiros contatos com a fotografia)
Meu avô proporcionou essas vivências familiares que eram fantásticas. Terminava de almoçar, abria o jornal e falava “leia”. Com isso tomei gosto pela leitura, e quando tinha 12 anos, antes de começar a carregar tijolo, meu professor, que é amigo de minha família, falou “você quer aprender fotografia?” Eu disse “quero”. Ele me ensinou as primeiras técnicas, abertura e velocidade, me mostrou o conceito da fotografia, que é a luz: “Olha, a luz é tudo na fotografia”. Ele me explicou, me deixou a câmera, uma Zenit, e disse “vai fotografando”. Comecei a fotografar, ele revelou os filmes e me disse “você tem potencial”, e foi me mostrando as fotos e falando o que eu tinha feito errado, o que tinha ficado certo. Tomei gosto pela coisa. Logo fazia casamentos, aniversários, namorados em banco de jardins. “Casei” meus irmãos, pois fotografei o casamento dos três.
Todos teriam que aprender primeiro as técnicas analógicas. Pois aprende a calcular, olha pra luz e sabe se vai ter que utilizar um tripé, qualquer velocidade abaixo de 60, sei lá, 3 segundos, abrir o diafragma em 2.8, dependendo da lente. E então calcula o que seria o correto pra queimar a fotocélula. Aprendi essas técnicas na forma analógica, e quando você revela, pega a foto, lembra o que calculou. Quando você estuda o analógico, deve anotar o que usou. Depois revela e faz um estudo.
(continua...)
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