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19.8.14

Resenha - livro "Fruta" (Daniel Lopes)


 “Fruta”, de Daniel Lopes, é um romance que se insere com certa facilidade entre os cânones estreantes da literatura brasileira praticada nesse início de século XXI. O texto, otimizado pela constante analogia entre a idéia de fruta e todos os elementos que a compõe (cor, vitamina, gosto, saciedade), faz com que estes elementos essenciais cumpram, no livro, a mesma importância que o alimento tem.
Utilizando recursos narrativos que lembram Rashomon, clássico cinematográfico de 1950 do diretor Akira Kurosawa cujo enredo é construído a partir das versões díspares e conflitantes de vários personagens, Daniel Lopes também elabora seus pastéis com o depoimento de quatro depoimentos: Matheus, que gosta de Clara; Clara, que gosta (e às vezes desgosta) de Matheus; de Fátima – tia de Clara – que, cega, tudo vê com clareza cristalina e Jude, o filho de Clara, que une os três personagens em torno de si. O que diferencia a prosa esperta do autor em relação ao mestre japonês, contudo, é um certo ar impressionista em sua composição, com histórias de capítulos curtos, cuja gradação permite uma construção imagética linear do mundo pulsante que estamos lendo, vendo e observando. Isso faz com que a leitura flua, flutue em torno da gente, enquanto caminha para um fim, determinante e deslumbrante. Digo mais, um fim elegante.
Se vale outra comparação um tanto ousada, muito temerária e talvez desproporcional, a obra deste autor está inserida numa linha textual próxima à narrativa de Clarice Lispector. Esta ilustração apenas reforça uma localização tempo/espaço, usando como referencial o principal vetor da literatura introspectiva que temos no escopo nacional. Se a rotulagem, porém, traduz uma idéia genérica demais, ao mesmo tempo pode nos indicar por onde trafega este escritor denso, irônico e substancioso, que domina os quadrantes de sua arte.
Daniel Lopes burila seu texto com coesão (“Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e o homem criou o espelho”. p. 176), deboches metalinguísticos (- Mas como? Isso faria do crítico artista? p. 75), lirismo exarcebado (A felicidade é uma visão aterradora. É preciso muita responsabilidade para ser feliz”. p. 84), ironia pop elevada à décima potência (“Um som de violino começou a rolar baixinho num canto e então o poeta-surrealista-acadêmico Bráulio Spiller entrou voando feito um balão pela janela. O ego inflado, o corpo todo estufado, assemelhava-se ao Zepellin”. p. 74) e uma destreza algo filosófica que permitem aprumadíssimas sensações (“Antes, existiam dois mundos, o de dentro e o de fora. A princípio o mundo de dentro era pequeno e de fora, imenso. Aos poucos, o mundo de dentro foi crescendo e  o de fora diminuindo. Até que chegou o momento em que achei que podia viver dentro de mim. Só então Deus tirou minha visão”. p. 22).
Ao finalizar a leitura, fiquei com a vontade de voltar ao início e reiniciar tudo, tarefa que de fato fiz. Assim, fui redescobrindo pequenos detalhes que tinham fugido à primeira compreensão e me permitiram novas descobertas neste texto visceral e contagiante. Essas descobertas, claro, levaram a prazeres inéditos que com certeza se perpetuarão quando empreender uma terceira leitura.

Escobar Franelas

Romance: Fruta
Autor: Daniel Lopes
Páginas 191
Editora: Terracota (www.terracotaeditora.com.br)
Ano: 2013
Orelha: Paulo Scott
Revisão: Luciana Reis






14.8.14

Ninguém Lê – “devolva o meu lado de dentro” (Sinhá)





Estive no Ninguém Lê pela primeira vez no mês passado. Fiquei apaixonado pelo projeto. Voltei agora, desconfio que voltarei muitas vezes.
Ocorrendo no espaço Hussardos, na Praça da República, zona central da Sampalândia, tod primeira segunda-feira de cada mês, o Ninguém Lê é uma roda informal de debate sobre uma determinada obra literária. O que chama atenção – e talvez aí resida o ineditismo e a beleza da proposta – é que: a) autores convidados são preferencialmente de fora do meio midiático; b) os interessados em participar da roda para o próximo mês recebem gratuitamente dos organizadores um exemplar da obra que será discutida; c) a informalidade dá o tom na conversa, fazendo com que o papo seja fluido, gostoso e sem erudições desnecessárias.
Neste 4 de agosto último, a obra a ser dissecada era “devolva meu lado de dentro”, da poeta e artista visual Sinhá. A rapaziada que dirige o evento, Ni Brisant (do sarau Sobrenome Liberdade, no Grajaú) e Victor Rodrigues (do projeto Praga de Poeta), iniciou o encontro com a leitura coletiva de alguns dos poemas do livro e após isso, iniciou-se um longo e delicioso diálogo entre platéia e artista.
Indagada sobre porque seus poemas não têm títulos, ela afirmou, “muitas vezes leio um título e pareço já saber o que vou ler. Prefiro deixar o poema falar por ele mesmo”. Em outra revelação, ela disse gostar da idéia de que a pessoa que lê seus poemas sinta que ela fala diretamente para este leitor. “Eu escrevo desde muito cedo”, disse, “estudei numa escola que sempre priorizou isso. Minha professora também ajudou muito, meu pai sempre me contou muitas histórias e eu sempre gostei muito de escrever”, complementou.
Simpática e serena, ainda assim Sinhá não abre mão da contundência e da coerência. Retorquindo uma questão trazida pelo público sobre a função da poesia, desconversou afirmando que não crê em funções na arte, só em sentimentos. Em dado momento, assumiu que às vezes lê um livro inteiro e não grava nada. Em outras situações, lê um verso e este fica gravado para o resto da vida. Em outros momentos, provocou sensações poéticas profundas como quando afirmou, “tenho o sono leve. Às vezes estou sonhando e parece que estou inventando o meu sonho”.
Explicando a separação que faz entre o ato de grafitar e o de escrever, Sinhá sentenciou que, apesar disso, seu livro não tem ilustrações porque ela entendeu que ali as letras se bastavam, “sou muito apaixonada por palavras”, sentenciou.
A poeta que grafita e a artista plástica urbana que escreve são, na verdade, uma só pessoa. Múltipla e calma, corporal (como referenciou Victor Rodrigues) e líquida (como reconheceu Ni Brisant em certo momento), objetiva e abstrata, Sinhá desconstrói com clareza incomum os chavões de quem tenta enquadrá-la. Quando, por exemplo, é provocada a explicar seu heterônimo, ri com ironia sutil mas explica sucintamente, “quando em São Paulo comecei a grafitar, assinava meus trabalhos como Colcha de Retalhos mas passaram a me chamar de Colcha. Eu não queria. Depois veio Sinhá Nega, que era muito grande. Só então comecei a usar Sinhá. Mas aqui a politização é bem grande e já até me perguntaram porque eu tinha o nome do opressor”.
Para ela, o que vale, no entanto, é que as relações sejam profundas, “observar as pessoas, pegar nas mãos, tocar, dialogar”. Martelando na cabeça a não banalização da palavra amor, ela nos envolve com sagacidade na mesma teia. E todos acabamos realmente devolvendo (sempre) o lado de dentro. Para quem realmente se importa com a gente.

“no meu peito
não tem miséria,
é carne farta
de coração.”
(Sinhá em, “devolva meu lado de dentro”, p. 26)

Escobar Franelas

Foto: Antonio Miotto

Foto: Antonio Miotto