7.3.19
Um textículo: "manhã de cinzas"
Crescido em uma casa em que os pais eram evangélicos, ainda que não praticantes, era incompreensível para mim, na infância, entender os regramentos católicos assim como de outras religiões. Esse o mal do fundamento dogmático e da falta de multiplicidade de leituras do mundo, que impede uma visão ampliada, plural, da vida.
Menos mal que na adolescência fui me livrando das amarras doloridas das exigências cristãs e fui penetrando aos poucos no mundo misterioso e imaginativo de outras crenças. O candomblé, por exemplo, talvez por ser tão execrado em família, sempre exerceu uma espécie de fascinação nesse escriba. As religiões indianas, idem. Também as outras formas dialógicas com o divino propiciadas por outros cultos de matriz africana. Na verdade, todas as expressões religiosas não teocráticas me chamam a atenção, até pela complexidade de leitura. No momento, tenho dirigido atenção especial ao xamanismo dos povos da floresta, uma aula de deleite espiritual em correspondência com os eflúvios da natureza.
Contudo, depois de conviver com essa oferta enorme de valores espirituais, racionalmente percebi que o que mais me apraz é justamente o não acreditar em nenhum ser divino, não delegar a nada o meu prazer e a minha responsabilidade sobre minhas relações com a vida, a sociedade e a natureza. Ainda assim reconheço e respeito os valores gerais de crença que promovem nas pessoas um regozijo que é inominável e intransferível. Inominável pois cada ser encontra a sua palavra única que traduz a sensação de bem estar que seus valores comportam e expressam. Intransferível pois não como repassar esta sensação a ninguém. O que sentimos e cremos, é pessoal.
E dentro de uma lógica humana completa, os deuses e deusas a serem cultuados (as), evidentemente, não serão jamais iguais, pois são construções individuais de visões, anseios, culturas e valores. Não é possível reproduzir pensamentos e desejos. No máximo, imitar.
Tentando entender o que significa a Quarta-Feira de Cinzas neste século 21, acabei por abstrair-me e deixei o pensamento voar; deu nesta crônica que, pra variar, fugiu totalmente ao escopo previsto no momento em que iniciei o rascunho. Essa a beleza da arte. Na verdade, iria apenas comentar que não conheço pessoa alguma que nos dias de hoje cumpra os sacramentos previstos para este dia de pós-carnaval. Em tempos que ficaram lá no pretérito, lembro de umas tiazinhas que ainda cumpriam esse ritual. Hoje, não mais.
Mas é um meio feriado no calendário que todos gostamos de fruir. Até ateus.
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