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26.3.20

Uma cronicazica: "coronada - 4 (o sublime e o zen na palavra foda-se)"


Querido diário, queria dizer para você que este subtítulo é uma afronta aos meus princípios, mas hoje estou movido pelo hálito da ironia. Então, suporte-me.
Ah, antes de iniciar, também espero que você note a agudez dessa traça que me ri por dentro, a chacota, e está clara - mais que clara, transparente - na palavra "querido" e na própria sugestão de que você seja um "diário". Diário? Como assim? De onde tirei essa ideia (quase uma certeza absurda) de que vou abastecer você aqui com esses falsos assuntos a cada rodada do sol?
Mesmo assim, "querido", digo que hoje amanheci bem. Melhor que ontem, que já tinha sido melhor que anteontem (aqui, numa linha só, já matei 3 dias de depoimento hahaha). Mas volto ao tema e explico com clareza: dormi dez horas essa noite. Dez horas, você acredita? E - detalhe! - seguidas! Olha que sortilégio! E você deve estar se perguntando como cheguei a esse oásis, esse orgasmo edênico.
Digo que tudo isso ganhou contornos ontem, quando resolvi apertar o tal botão foda-se. Como fiz isso? Ah, eu sabia que você iria perguntar, é bem típico de você essa curiosidade mordaz. E como sou ególatra, respondo sem pestanejar, apenas fazendo um charminho inicial, só pra criar um falso clima de humildade. Apertei o botão quando percebi a  armadilha que é a clausura desses dias, por conta desse vírus desleal que empurrou todo mundo pra dentro de suas casas.
Confesso, ficar fechado comigo é insuportável. Minha cabeça não dialoga com o coração. O pâncreas e o fígado vivem às turras e a perna direita todo dia tenta derrubar a esquerda. Aqui é uma terra sem lei. Melhor, é uma terra de leis duras e orquestradas, onde uma mão escreve, a outra nem passa perto. Tanto que agora até os olhos parecem olhar diferente, o que um vê melhor de perto, o outro parece enxergar com mais precisão de longe. É uma doideira esse corpo aqui, a boca balbucia um samba e o dedo já tamborila na coxa.
E já que fiquei fechado, decidi me lacrar. Mas não me suportei nem dois dias e já tive que respirar melhor pro lado de fora. E pra não machucar ninguém que convive comigo, resolvi guardar silêncio. Ocorre que quietude também machuca e meus espinhos já estava espetando tudo à volta. Por isso a maneira que encontrei de cortar esses espinhos que eu já vinha criando mesmo sem querer, foi podar eles com muita atividade: então o primeiro foda-se foi ontem à tarde, quando resolvi podar as plantas. Senti melhoras na hora. Hoje fiz mais: além das plantas, arrumei a porta de armário que estava bamba faz bem uns seis meses, tirei pó dos livros da estantes, dobrei roupa. Dobrar roupa, acredite, é um dos melhores exercícios de foda-se que descobri. Nunca mais reclamarei desse nobre exercício da prática zen.

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