Rogério, pelos olhos da fotógrafa e poeta Rosinha Morais |
UM OPERÁRIO DAS LETRAS
Rogério Brito Correia, operário, apaixonado por futebol, décimo segundo filho de um total de 14, nascido no interior da Bahia, e morando atualmente em Guarulhos, poderia ter percorrido os diversos caminhos previsíveis para quem vem “de lá” do nordeste. Um dia, porém, “a poesia o escolheu”, como ele mesmo nos diz. Através dos versos de cordel e dos minguados livros didáticos da infância e adolescência, ele foi levado às asas da literatura, vôo que nunca mais o deixou. Desde então, tal como Quixote, vem combatendo o bom combate bíblico, lutando contra os moinhos de vento da ignorância humana, através de várias atividades dentro do mundo literário. Neste depoimento, ele fala das várias frentes com as quais milita no duro embate em prol da arte, da cultura e da vida.
1) Quem é Rogério Brito Correia?
RBC: Um operário, um botafoguense, pai de Ana Clara, esposo de Lúcia Mendes, enfim, um poeta que nunca teve a pretensão de mudar o mundo, apenas compreendê-lo e tentando a meu modo transformar o cotidiano, às vezes sofrido, em versos. Sou da cidade de Itiruçu, interior da Bahia. Moro atualmente em Guarulhos. Filho de José Santos Correia e Antônia Brito Lago, décimo segundo filho da família de 14 irmãos.
Sou curador do Prêmio Guarulhos de Literatura e autor dos livros Telúrico Lunático (Editora do Carmo, 2018) e Cangalha Escangalhada (Gerúndio Edições, 2013). Publiquei em diversas antologias, jornais, revistas e fanzines.
Coordenei o Sarau do Castelo Hanssen na Casa dos Cordéis, em Guarulhos, participei da peça de teatro Fala Sério Tia, de Osvaldo Alves. Sou membro e fundador do Grupo Olh’arte de Literatura, onde lançamos o Caderno Literário Catástrofe. Ministrei a oficina Exercício Poético com o poeta Vinicius Gonçalves de Andrade.
Ganhei o 1º Concurso Literário A Palavra em Prisma. Participei do segundo e terceiro Congresso Municipal: A Língua Diversificada Junto à Dinâmica das Línguas Naturais, realizado no Anfiteatro de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, organizado pelo professor e linguista Jairo Galindo. Também do III Fórum Mundial de Educação na discussão de Educação pela Autogestão. E do projeto de Bosco Maciel, Vida e Obras dos Poetas Nordestinos e Vida e Obra dos Poetas Guarulhenses, na Casa de Cultura Água e Vida.
Lá no interior da Bahia nunca tive acesso aos livros, não existia biblioteca, muito menos livraria, lia apenas o que aparecia nos livros didáticos, fragmentos de contos, algumas poesias, mas tinha um amigo que carregava alguns folhetos de cordel, foi quando peguei gosto pela literatura. Acho que não escolhi a poesia, ela me escolheu e sou sempre muito grato por isso. A poesia é a minha forma de encantar e desencantar o mundo:
Inevitavelmente poeta
Eu nunca pensei em ser poeta
Pensei em ser tudo na vida, menos poeta.
E hoje o que me resta é ser poeta
E ser poeta para mim, é tudo.
Quando eu cheguei aqui na capital
Vi que todos eram obcecados pelo capital:
Esqueceram de sentir a sensibilidade do poeta,
O devaneio do poeta
A riqueza e pobreza do poeta
Que à surdina de uma noite
Escreve em um guardanapo de papel em um bar qualquer
Pensando nos poetas que passaram em sua vida:
Drummond, Cabral, Bandeira, Augusto, Baudelaire, Patativa,
Lorca, Pessoa, Zé Limeira, Homero e Neruda.
São tantos que deixaram suas marcas, não só nos livros
Mas nos corações cheios de acidez e doçura, na tortura,
Na loucura.
Aqui estou na “Paulicéia Desvairada”
Vivendo vida modesta
Entre o caos e a sesta
Vou escrevendo poesia sempre que possível,
Mas é impossível fugir daquilo que me persegue.
Não que eu seja digno de ser poeta
Mas a vida me fez assim:
Poeticamente válido
Pateticamente sábio
Possivelmente vívido
Meramente morto
Espiritualmente solto
Sobriamente louco
E inevitavelmente poeta.
*poema do livro Cangalha Escangalhada
"A MINHA POESIA TEM UM POUCO DE SAGRADA, UM POUCO DE SANGRADA E UM BOCADO DE PROFANA"
2) Quando você cita que “Acho que não escolhi a poesia, ela me escolheu”, aparece uma citação cuja origem é bíblica. O que há de sagrado na sua poesia?
RBC: Estou um pouco perdido para responder tal pergunta, eu não sei o que há de sagrado em minha poesia, talvez a minha poesia se torne sagrada, quando atinjo de alguma forma a irmandade em nossas catacumbas, nossos saraus, eventos literários, reunião de escritores, é aí que a magia acontece e nossas almas se elevam e nos faz transcender.
Com o passar do tempo muda-se concepção de santificar ou demonizar o poeta, alguns que já foram “malditos”, subversivo, hoje nem tanto. Eu tenho muitas dúvidas, mas pensando bem, acredito que a minha poesia tem um pouco de sagrada, um pouco de sangrada e um bocado de profana.
Eu sinto toda essa mística dos poetas quando leio Murilo Mendes, Fernando Pessoa, William Blake, Baudelaire, Rimbaud, os poetas da geração beat e outros tantos que nos faz viajar.
O poder da poesia é muito forte, assim como o poder da oração de São Francisco de Assis:
“Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz
Onde houver ódio, que eu leve o amor
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão
Onde houver discórdia, que eu leve a união”.
3) O que você lê?
RBC: Eu descobri os livros um pouco tarde, mas sempre gostei de ler, de escrever, de escutar as boas estórias que os mais velhos contavam nos passeios nas casas no interior da Bahia, acho que aquelas estórias eram o primeiro acesso à literatura. Só depois, quando cheguei em Guarulhos, tive acesso aos livros. Eu vivia nos sebos e comecei a ler de tudo, mas buscava principalmente os poetas: Augusto dos Anjos, Castro Alves, Fernando Pessoa, Drummond, Bandeira, João Cabral de Melo Neto. Roberto Piva e Claudio Willer que fui conhecendo posteriormente, até chegar nos beats e os poetas contemporâneo, que alguns são até meus amigos. Na prosa fui descobrindo uma infinidade de escritores geniais como Machado de Assis, Jorge Amado, João Ubaldo, Balzac, Garcia Márquez, pirei também nos russos Dostoievski, Tolstói e outros tantos. Na realidade não é fácil falar das minhas leituras, como eu sou um pouco desregrado, vou lendo o que aparece e não tenho uma linha de leitura, às vezes no mesmo caldeirão (que é minha mochila), tem Saramago e Kerouac, José Lins e Flaubert, Graciliano e Verissimo, e por aí vai... Eu também leio muitos os escritores do cenário atual que vou conhecendo nas andanças que faço. Não vou citar nomes porque são muitos, e cada um, a seu modo, tem grande importância em minha simples carreira de poeta.
"OS GOVERNANTES NÃO TOLERAM A POESIA"
4) Estamos vivendo um momento no Brasil (e mundo) em que os direitos civis parece estar perdendo a luta contra a barbárie. Onde a arte pode contribuir para reestabelecer o equilíbrio do mundo?
RBC: O poeta não derruba governo, porém temos a importante missão de buscar uma sociedade mais justa, mais igualitária. A nossa luta nunca será em vão. (Certamente, vou falar muitos clichês aqui, mas não dar para fugir deles). Os grandes escritores sempre tiveram essa preocupação com os problemas sociais, eu só acredito em escritor que tenha uma causa, uma bandeira, uma ideologia: Castro Alves, Patativa do Assaré, Maiakovski, Garcia Lorca, Bertold Brecht entre outros tantos que se incomodaram com a situação do outro.
Os governantes não toleram poesia, porque muitas vezes a poesia é um dedo na ferida, e eles querem nos aniquilar. O poeta engajado é muito mais que um poeta, na atual conjuntura do país é imprescindível ser um poeta militante.
Apesar da turbulência e da truculência, a poesia e a arte sempre serão resistências.
Certamente a arte não salvará o mundo, mas o deixará mais colorido, menos pesado.
Vou finalizar com esses ver versos de Bertold Brecht:
“Para que tem uma boa posição social,
Falar de comida é coisa baixa.
É compreensível: eles já comeram”
5) Você mora numa cidade que é a segunda maior renda per capita do estado. Consegue perceber reflexos desse acúmulo de capital revertido em investimentos de cultura e arte?
RBC: Guarulhos, cidade em que resido, tem uma das maiores rendas per capita do país, uma cidade superdesenvolvida com diversas empresas, aeroporto internacional, malha rodoviária de grande relevância, a maior cidade não capital do Brasil, porém na cultura Guarulhos não é esse gigante todo.
Faltam projetos e políticas públicas que perdurem, falta de conservação dos espaços culturais: os teatros, biblioteca, acervos históricos, estão deteriorando, o que nos deixa entristecidos. A agenda cultural na cidade está cada vez mais pobre de espetáculo musicais, danças, teatros, cinema e na literatura é um Deus-nos-acuda. Os secretários de cultura não têm a menor sensibilidade para entender a força dessa produção cultural.
Certamente, o que nos salva é a cena independente: O Slam do Prego que consegue reunir, às vezes cem, duzentos e até trezentos jovens em uma praça pública para falar poesia, geralmente de resistência. Com uma organização entusiástica de Rosinha Morais, Monique Martins e Joel Dias Filho. O Prêmio Guarulhos de Literatura, também independente de governo e organizado por Auriel Filho, é uma das vertentes literárias com grande ênfase na cidade, onde se premia autores de todo o estado de São Paulo. Os saraus que acontecem em vários espaços mantêm a chama acesa.
Guarulhos promoveu nos dias 30 de novembro a 9 de dezembro de 2018, o Salão do Livro na cidade, onde teve uma participação insignificante ou quase nula dos escritores locais. Foi convidado apenas a AGL (Academia Guarulhense de Letra), que tem pouca representatividade entres os escritores da Cidade.
Apesar dos pesares, Guarulhos não é uma lástima, muito pelo contrário, é uma cidade que tem uma bela e diversificada produção cultural: arte visuais, música, teatro, cinema, literatura e muito mais. Guarulhos uma cidade que me acolheu e eu derramo todo meu amor por ela. "I love Guarulhos".
6) O que você está escrevendo? Tem alguma coisa prestes a ser lançada?
RBC: Não pretendo lançar nem uma obra a curto prazo. Literariamente, o ano de o ano de 2018 foi de grande produção, lancei o meu livro de poemas Telúrico Lunático, participei de três antologias poéticas da Editora do Carmo: O Poeta é Um Fingidor, Havia Uma Pedra, Para Vinícius; e também participei da Antologia Gotas de Vinagre, produzida pelo poeta Nego Panda, da Baixada Santista.
Estou escrevendo à la Dorival Caymmi, alguns contos, crônicas e poesia. Quando serão publicados? Ainda não sei, espero que não demore.
"INDEPENDENTE DE QUALQUER TECNOLOGIA, O LIVRO
SEMPRE TERÁ O SEU ESPAÇO"
7) Como você vê imagina o futuro da literatura, com as mudanças tecnológicas que estão em curso?
RBC: Eu vejo com bons olhos, não acredito que essas mudanças tecnológicas irão acabar com o livro físico. Os escritores devem usar a seu favor essas mudanças, serão inevitáveis. Eu mesmo já estou compreendendo os e-books, gosto dos blogs e outras plataformas digitais, apesar de usá-las com moderação. Porém nada vai substituir o encontro, o bate-papo, o contato direto com o autor, o autógrafo, o abraço, lançamento do livro, mesmo porquê nunca vi um escritor fazendo de lançamento de um e-book.
Muitas pessoas poderão questionar se não é a tecnologia que causa o fechamento das livrarias. Particularmente não acredito nisso, o problema da literatura é muito mais amplo.
Independente da qualquer tecnologia, o livro sempre terá o seu espaço.
8) Quando você fala que "o problema da literatura é muito mais amplo", referindo-se à quase eterna problemática da literatura no Brasil, imagina ideias e/ou soluções que poderiam ao menos atenuar o pesadelo que é essa questão?
RBC: A literatura fala muito de um povo, de sua cultura, linguagem, costumes. Existem muitas medidas a serem tomadas para que a literatura tenha uma prática prazerosa e não apenas uma obrigação de leitura. Uma medida que poderia surtir efeito a longo prazo, seria o investimento nas bases, para formação de leitores. A escola, os pais e os professores têm um papel fundamental para que isso aconteça, trabalhar a literatura de forma lúdica é o grande segredo para conquistar os alunos e formar em eternos leitores.
O poder público muitas vezes deixa a desejar, deveria ter mais fomento para literatura, ter projeto que contemple essa área do conhecido, que é de grande importância para a sociedade.
Acredito que o escritor também tem que se aproximar da sociedade, da sua comunidade, pois os escritores ainda são vistos como um intelectual de difícil acesso (sic), longe da realidade de muitas pessoas, como se ele vivesse em outra dimensão, apesar que esse conceito está mudando atualmente.
Certamente, não existe uma receita pronta para atenuar o pesadelo, e sim tomar um conjunto de medidas para o fortalecimento da literatura com debates entre os escritores, editores, livreiros, sociedade civil, que só assim a literatura terá o seu lugar de destaque.
9) Você circula em diversos locais onde está acontecendo uma ebulição artístico-literária. Desse universo marginalizado da expressão, tem algum nome que você gostaria de citar ou referendar?
RBC: Eu poderia citar apenas um nome, mas eu transito nesse meio literário há quase 20 anos. Nessas minhas andanças conheci diversos artistas, muitos deles tiveram uma grande importância em minha vida de poeta. Quando comecei a escrever conheci o poeta Ibrahim Khouri que dava “Curso de Versificação” na Biblioteca Monteiro Lobato. Nesse curso conheci Vinícius Gonsalves de Andrade que é um poeta sensacional, ele foi o grande mentor do grupo que fundamos, chamado Grupo Olh’arte de Literatura. Nessa mesma época, conheci diversos poetas que reverencio: Francisco Marques, Mauricio Del Manto, Anderson Alexandre Ávila, Jean Narciso Bispo Moura, Wagner Pires (fundador do grupo Antropoesia), Ale Saito (poeta e Studio KAS Tattoo), Fabio Mello, Auriel Filho (atual idealizador do Prêmio Guarulhos de Literatura), Bosco Maciel (fundador da Casa dos Cordéis), Eugenio Asano (que foi escritor e editor da Gerúndio Edições), Castelo Hanssen poeta, jornalista e uma pessoa maravilhosa que sempre nos incentivou. Um pouco mais recente conheci outros escritores com um trabalho bem relevante: Rosinha Morais, Akira Yamasaki, Escobar Franelas, Fabiano Fernandes Garcez.
Agora, falando em universo marginalizado, quero referendar um artista que veio do interior de Pernambuco, com pouco apoio financeiro, pouca formação acadêmica: Osvaldo Alves é o que chamamos de artista nato. O cabra é poeta, ator, cantor, faz teatro produzindo seu próprio cenário e dirigindo seu espetáculo. Ele também é o escultor, fez a escultura do “Índio Guaru” que está exposto no Parque do Bosque Maia em Guarulhos. Muitos admiram a sua obra, poucos sabem quem é esse grande artista, tão marginalizado. Saúdo Osvaldo Alves! Um homem que tira o pouco que tem para investir no que ele mais ama, a arte. Fiz um poema para homenageá-lo.
À arte rica
(Ao poeta e amigo Osvaldo Alves)
Nada é mais claro
Do que a clareza de teus poemas
Nada é mais puro
Do que a pureza da tua arte.
Nada é mais beatificado
Do que a palavra que tu trazes
Nada é mais vero
Do que a veracidade de tua luz.
À tua arte é leve
Apesar do fardo pesado
Que tens que carregar.
À tua arte deixa mazelas
Mas não deves remediá-las.
À arte cura
Apesar das sequelas.
À tua arte faz rir, faz refletir;
Sobre as enfermidades do mundo.
Sobre o cotidiano
E sobre o que estamos fazendo vida.
À tua arte é rica
Mas não te enrica
E muitas vezes consomem
O pouco que tu tens
Mesmo assim você traz a arte
Como filosofia de vida.
À arte pela arte
À arte pela vida
À arte pelo simples fato de ser
À arte pelo simples fato de ser.
10) Tem alguma questão que você gostaria que eu tivesse abordado? Se sim, faça a pergunta e responda a seguir. Obrigado!
RBC: Não. Você foi muito coeso nas suas perguntas e não me atreveria a fazer-me mais uma pergunta.
O que eu quero mesmo é agradecer pela oportunidade de mostrar um pouco do que sou ou do que penso que sou. A gente tem poucos canais que nos dão a oportunidade de expor nossas ideias. Eu só tenho a agradecer. Muito obrigado.
Verdades e mentiras
Digo que não sou, sendo
E quem me disser que não,
Mente.
Digo que não quero, querendo
E quem me disser, não queira
Mente.
Digo que não vejo, vendo
E quem me disser, talvez,
Mente.
Digo que não peco, pecando
E quem me disser, iníquo.
Mente.
Digo que não minto, mentindo
E quem me disser, mentiroso,
Mente
Foto de Cesar Augusto Carvalho |
Capa do livro Telúrico Lunático, clicada por Luka Magalhães |
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