“Não procureis qualquer nexo naquilo
Que os poetas pronunciam acordados”
(Jorge de Lima)
A poesia só faz sentido se ultrapassar o próprio sentido dado a ela pelas convenções didáticas e sociais. Escrever poesia exige certo estado de atenção; ler, mais ainda; compreender, muito mais. Leitura, escritura e compreensão são processos delicados, profundos, versáteis e intercambiáveis de transcodificação das imagens mentais em signos verbalizados, depois lidos e ouvidos, e então modulados e traduzidos pelo filtro sensível e formativo de quem está fruindo o poema. A essa complexa estrutura dou o nome de sublimação.
A matéria que traduz o estado de sublimação do ser-poeta muitas vezes refere-se à potência epifânica que acontece no exato momento em que o intelecto, de maneira pouco cerimoniosa, indica ter entendido os elementos que a priori estavam no entorno da construção poética. É o gran finale, o momento em que a poesia sai do estado mental para corporificar-se, seja no papel ou na tela de um computador, ou nos acordes uma música. Paralelamente, para quem está lendo ou ouvindo (lembremo-nos que quem lê/ouve também cria imagens do que está diante de si, para si e em si), essa epifania se dá no momento em que este ser-leitor, também de forma intelectualizada, decodifica aquilo que os versos queriam dizer. Sabemos que isso pode ser uma armadilha falaciosa dos nossos sentidos, pois o entendimento de agora não será o mesmo a segunda leitura ou audição, tampouco as emoções se repetem. Ainda assim, é uma possibilidade. Independente dessas condições, a poesia reproduz em nós uma embriaguez sempre inédita e não alienadora.
Esta introdução fez-se necessária para situar manual para ler as estrelas, pequeno livro do poeta Daniel Carvalho, ilustrado de maneira muito sagaz por Rodrigo Mota. Situar aqui indica encontrar ressonância no tempo-espaço para os versos de um poeta jovem ainda mas gabaritado e sensível. Sobretudo sensível. E este recorte – “pequeno” – não dá conta da enormidade constitutiva de um libreto que, paradoxalmente, é gigante. Ei-lo:
Quando pela primeira vez vi uma estrela
cadente
entendi que existe beleza na dor da
efemeridade (poema VII)
A representação das sensações, contudo, não é apenas a sublimação de um eu-lírico exultante diante do Todo, mas também diz respeito a um estado anunciatório. E os versos enxutos do poeta não declinam dessa vocação.
Há universos que se expandem para dentro (poema IV)
Falar de Carvalho e seu manual seria fácil a partir de analogias com o mundo materializado das estrelas e seus efeitos alucinatórios na alma de qualquer contemplante. Uma leitura mais incisiva, porém, indica que a poesia deste autor abstrai-se e vai mais longe do que uma reduzida analogia com astros. O que o poeta faz é um estudo elaborado das sensações que o vazio emana durante a viagem. Que viagem? Qualquer viagem, aquela que você decidir. Uma viagem em que qualquer verso pode ser o ponto de parada. Ou de reinício.
É em trânsito, entre as projeções do vir-a-ser, que depositamos as expectativas das realizações surgidas no encantamento que as explorações proporcionam. O contrassenso é que são nessas viagens que nos exilamos do passado e do futuro, restando-nos a beleza do presente que renasce a cada instante. Isso o poeta nos diz:
É preciso entender que há galáxias
Habitáveis apenas com os olhos (poema IX)
A combinação gnóstica que se dá na intermediação entre o poeta e suas visões cosmogônicas permitem um voo elaborado em torno do universo do sonho. Aliás, acredito que arrisquei todas essas linhas para compreender que o manual para ler as estrelas é como uma catraia, pequena embarcação para uma só pessoa. E não é uma ode à solidão. Mas à solidariedade.
Serviço
Livro: Manual para ler as estrelas
Autor: Daniel Carvalho
Gênero: Poesia
Ano: 2018 (1ª edição), SP
Ilustrações: Rodrigo Motta
texto Escobar Franelas
foto Jovino Carvalho
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