Foto Luka Magalhães |
ESCOBAR E A FICÇÃO DO COTIDIANO ou Darkney sabatina Franelas
(Por Claudemir Santos)
O ano devia ser 1999. Ou 2000. Je ne sais pas. Porta da extinta, chacinada pelo Estado de São Paulo gestão Alckmin (Nunca poderemos esquecer e nem devemos perdoar!) Oficina Cultural Luiz Gonzaga. Sacha Arcanjo havia contratado eu e Ivan Neris para cuidar da luz e do som dos eventos. Escobar, para registrar em vídeo as apresentações. Logo, isto aconteceu numa sexta, sim.
Eu fumava na porta da Oficina. Escobar saiu lá de dentro com um cigarro na mão e antes de acendê-lo, disparou:
“Você já reparou que isto é um grande (importante?) ícone de comunicação?”
E assim nos comunicamos pela primeira vez. Nestes vinte anos, eu e Escobar andamos juntos pela mesma estrada, pegamos atalhos ou paramos neste ou naquele trecho pra dar um tempo. O certo é desde daquele dia, daquele bendito cigarro, nós estamos juntos. Na amizade e na arte. Escobar, mais sábio e maduro, deixou o cigarro e a bebida há tempos (já voltou à bebida, levemente), e rodou por aí bem mais que eu, ainda fumante, alcoólico ma non troppo e taciturno casmurrado.
Neste período, li todos seus livros, tendo a honra de prefaciar, certa vez, o “Antes de evanescer”. A literatura de Escobar, da poesia à prosa, é algo deliciosamente delirante, inteligente e surpreendente. Entre meus escritores favoritos, é o tipo de autor que não está na lista dos best sellers da vida e a gente se pergunta o motivo, desconfiando da máquina capitalista que gira em torno dos livros que vendem tanto e não dizem nada. Exagero? Bom, basta pegar um livro de Franelas e ler. Sente-se ali uma literatura que deveria transcender toda a elite periférica da chamada “cultura marginal” ou qualquer outro nome que se queira dar a este punhado de gente que, com gosto peculiar, lê, apoia e faz crescer os escritores locais, e chegar a grande cultura de massa para que ela engrossasse o caldo a ponto de termos mais humanos e menos patos nesta sociedade contemporânea. Sim, senhores: ler Franelas é questionar e mudar-se, não espere menos. Franelas revela a ficção de nossos dias.
Novamente diante da ficção de nossos dias, chega em nossas mãos o livro “Premiado”, lançado este ano e já um sucesso por onde quer que passe.
Este lançamento então nos proporciona um ótimo momento de conversar e conhecer melhor a mente de Franelas, sua criação artística, seu ativismo cultural e outras coisas que fazem parte do asfalto da estrada da Arte por onde pisa.
ENTREVISTA
ALDEIA SATÉLITE – Do seu primeiro livro até agora, sua escrita amadureceu ou rejuvenesceu?
ESCOBAR FRANELAS – Processos de expressão na arte, portanto, também de escrita, são sempre de aprimoramento, estamos fadados a acreditar que estamos amadurecendo. Ao mesmo tempo, escrever é também um processo de busca, renovação e interiorização de novas ânsias, onde as certezas do minuto anterior podem e devem ser revisitadas a todo instante. Isso significa que muitas vezes retrocedemos, retornamos a determinados pontos de partida, para refazermos percursos. Essa é uma das grandes extasias da arte. Escrever é paradoxal.
ALDEIA SATÉLITE – Onde se diferenciam e onde se encontram “Antes de Evanescer” e “Premiado”?
ESCOBAR FRANELAS – Observados numa perspectiva conjunta, ambos tratam da alienação do indivíduo e dos riscos que isso implica; de como a vida é sempre surpreendente e a todo tempo estamos sujeitos a virar esquinas dentro da própria história. As diferenças entre eles são bastante significativas. A primeira e mais óbvia é o uso da terceira pessoa em Premiado e da primeira em “Antes de Evanescer”. Outra questão substancial é que no primeiro o protagonista, mesmo que perdido, é o sujeito na construção de sua trajetória – ou ao menos poderia ser – enquanto o Léo de Antes de Evanescer torna-se, pelos fatos, objeto de um destino improvável e arrebatador. Creio que a maior dissonância entre os enredos é que um trata da desidratação social a partir de fatores externos, enquanto em outro, essa corrosão de sensações se dá justamente por meio de um excesso repentino dessa “hidratação” financeira. Estes dois livros são muito próximos, paralelos, mas que nunca se esbarram em suas histórias.
ALDEIA SATÉLITE – Você acredita que este universo seleto da cultura, digamos, underground, que rola nos saraus e entre os autores independentes pode se expandir ou implodir?
ESCOBAR FRANELAS – A história tem nos ensinado que todo período de expansão tem seu ápice e depois há um filtramento natural, pois é da natureza humana (portanto, também social), a renovação, a mudança, o roteiro ressignificado. Essa movimentação, os saraus, ainda enfrenta outros fatores determinantes, que vão do esfacelamento das políticas públicas no país, o que agrava sobremaneira a sua existência, já que muitos se formaram dentro de um contexto de estado que, se não criava condições de fomento, ao menos não implicava com este tipo de ação coletiva (Lembremos sempre que reuniões coletivas das camadas mais subalternas da sociedade, são normalmente reprimidas pelo aparelho policialesco criado dentro da própria sociedade). Como a maioria das pessoas que frequentam saraus têm uma identidade progressista-humanista (ao menos todos os saraus que visito ou conheço têm esse perfil), que perderam aportes do poder público e sem apoio privado, enfrentam também as nem sempre sutis formas de criminalização que toda ação social não normativa recebe, ainda mais no ambiente periférico, onde o Estado sempre é mais violento contra as multidões, de duas ou mais pessoas. Não sou pessimista, mas a realidade tem apontado o dedo indicador em nossas caras, descaradamente.
ALDEIA SATÉLITE – Como anda a produção literária na zona leste que você frequenta?
ESCOBAR FRANELAS – Intensa. O filtro comparativo permite observar, porém, que a qualidade textual, técnica e conceitual é bem desigual. Talvez seja este o próximo levante dessa potência descomunal, que é o das forças quando se somam. Mesmo assim considero como muito positivo que muita gente esteja publicando. É a primeira, talvez a segunda, das dezenas de ações que farão diferença no futuro.
ALDEIA SATÉLITE – Na questão editorial, o que há de novo que facilita a publicação de um livro, principalmente pra quem está começando e não dispõe da grana necessária para publicar por uma editora “tradicional”, mesmo que pequena?
ESCOBAR FRANELAS – O domínio das novas tecnologias que auxiliam na auto publicação é um avanço considerável. Permitiu um acesso maior aos meios e barateou os custos. Isso “inflacionou” o mercado das publicações e muita gente lançou livro sem a depuração que a arte requer, para que seja de fato permanente e significante. Desconfio que houve uma falsa sensação de avanço, com muita gente se tornando escritora. Ouso arriscar, contudo, que se não houver o movimento contrário, de fomento de leitores (e, num segundo momento, de um público leitor sensível e crítico), vai resultar num mundaréu de livros servindo de suvenir nas estantes empoeiradas ou calço de armário. Ou simplesmente contribuindo para o aumento da quantidade de lixo. Quero dizer com isso que precisamos exageradamente de mais olhos e cérebros dirigidos à leitura, o que exige ações que resultem no nascimento dos leitores de amanhã. Isso, claro!, exige reflexão, ponderação, organização e ação.
ALDEIA SATÉLITE – Quais os próximos passos de Franelas na literatura e nas produções culturais?
ESCOBAR FRANELAS – Como acabei de lançar o “Premiado”, estou concentrado nele, mas posso adiantar que as próximas ações serão coletivas: a finalização da revista RAMO, publicação bianual que contempla a produção poética de São Miguel e região; e, junto com o pessoal da Casa Amarela, o lançamento do libreto Sacha 70 em novembro. Este songbook é uma singela mas justa homenagem a este ícone da cultura e arte de São Miguel, o Sacha Arcanjo, que completará 70 voltas em torno do sol.
+ SOBRE FRANELAS:
Escobar Franelas é escritor, educador e cineasta. Formado em História, autor de “hardrockcorenroll” (poesia, 1998), “Antes de Evanescer” (romance, 2011), “Itaquera – Uma Breve Introdução” (história e memória, 2014), e “haicaos – feridas, fragmentos e fraturas poéticas” (poesia cartonera, 2018) e Premiado (romance, 2019), já participou de antologias de poesias, contos e crônicas.
Escreve em portais, jornais e revistas. Ministra oficinas, palestras e minicursos de letramento, historiografia e produção audiovisual em diversos espaços, entre os quais, Fundação Casa, Projeto Formare, Programa Jovens Urbanos etc.
Faz parte dos coletivos A Casa Amarela – Espaço Cultural (São Miguel Paulista), Lentes Periféricas (de produção audiovisual) e Curta Suzano (organizador de festivais de cinema).
Em audiovisual já produziu, dirigiu e roteirizou filmes em diversos formatos e gêneros. Seu último filme é “São Miguel, destino: Movimento Popular de Arte” (2018).
Perfis:
– no blogue “vs. eu” – http://escobarfranelas.blogspot.com
– no Facebook https://www.facebook.com/escobar.franelas
– no Youtube https://www.youtube.com/user/Efranelas
*Texto publicado originalmente em https://aldeiasatelite.wordpress.com/2019/07/24/escobar-e-a-ficcao-do-cotidiano-ou-darkney-sabatina-franelas/?fbclid=IwAR3WyEp0ddK6InrVkF3fP7EEY_oyR7-PckIInN5gKCLV24HQE3n30exm9A8
Foto Magda de Souza |
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