Pesquisar este blog

31.12.15

Resenha - livro "A delicadeza dos hipopótamos" (Daniel Lopes)





Escrever é fazer um pacto. O escritor, o escritor-escritor, deve estar disposto a sacrificar tudo, inclusive a própria alma, em prol da palavra.” 
Na mitologia bíblica, Tamar pode ser considerada como a indesejada, aquela por quem Onã não se sente atraído. Ou talvez o seu contrário: a Onã só interessa desfrutar do corpo da viúva de seu falecido irmão Er (mais velho), mas não quer que ela tenha um filho do qual derivará a memória do morto. A tradição o obriga a entregar-se maritalmente a ela e ele, num gesto de rebeldia a Deus e a ela, prefere masturbar-se (ou gozar fora) do que ter um filho com ela. 
No livro “A Delicadeza dos Hipopótamos”, romance bojudo de Daniel Lopes, temos um protagonista (Léo), que em algum momento de sua vida, volta para sua cidade natal, Tamar. 
Assim como no sofisticado texto bíblico, o retorno de Léo, esse filho pródigo, é um embate frio e nada nostálgico do narrador com a cidade que o recebe. E, tal qual o enredo do Gênesis, Léo não quer Tamar, não ama Tamar, não possui Tamar, não deseja que sua relação com a cidade deixe herdeiros. É apenas uma volta. Por quê? Pra quê? Ele não nos diz. Podemos deduzir mas nunca saberemos de fato.
Se for possível formular um paralelo entre as duas metáforas, Léo perpetua a esterilidade na terra que não ama. A sua aridez se relaciona com a aridez do lugar e isso é tudo. Eles não se completam, não há sedução de nenhuma das partes. Tampouco as amizades que reencontra lhe dizem alguma coisa. Esse desencontro com a nostalgia fica evidente quando ocorre o incêndio na biblioteca da cidade. Biblioteca é o lugar que guarda e perpetua a história; sem livro, o passado passa a ser apenas oral, orientado por outros tipos de saberes e subjetivações. Também a igreja inacabada e o hospital incendiado indicam a indefinida incompletude do herói com seu tempo.
Daniel Lopes, porém, vai mais além nesse emaranhado. Determina que todos os habitantes locais são hipopótamos. E quem são os hipopótamos? A depender do protagonista, hipopótamos são sempre os outros. Tanto que um dos hipopótamos da cidade, Mauro, vive de esculpir... hipopótamos. Não cria outra coisa, a não ser hipopótamos inanimados. Duros. De pedra. 
Mas eis que num dia o narrador-personagem enfim cede: “A largura do meu corpo tomou proporções imensas, enquanto continuava a inchar, partiu as roupas, não deixando mais que fiapos pendurados no meu couro suado, escuro, fétido, untado. Abri a boca e saudei a catástrofe. A Arte, como os deuses, se alimenta da destruição. Eu agora era um hipopótamo, como os outros hipopótamos de Tamar, filha de Davi, minha aldeia”.
Autor fecundo e imagético, Daniel Lopes surge aqui mais incisivo, bruto e delicado que seus próprios hipopótamos. Seu enredo flerta com Kafka, dialoga com o realismo mágico latinoamericano, anda de mãos dadas com J.J. Veiga. Mas beija sem eufemismos Conrad, adentrando selvas labirínticas como se estivesse no Coração das Trevas.
Pois é na densa névoa que recobre os silêncios entremeados de breves palavras do cotidiano de Léo em Tamar, que vemos a selvageria do homem a sós consigo. E com Deus, o seu espelho. Apenas.

Serviço:
Livro: A delicadeza dos hipopótamos
Autor: Daniel Lopes
Editora: Terracota (SP)
Ano: 2014

30.12.15

Resenha - livro "Contos da várzea e outros blues" (Marcelo Mendez)




Caro leitor, vos afirmo: futebol serve pra isso. Para emocionar, para interagir, para se apropriar do meio social.” (“Fellini vai à várzea e o folk do Parque Novo Oratório”). A primeira crônica do livro “Contos da várzea e outros blues”, do jornalista Marcelo Mendez, traz para o universo literário aquilo que o futebol tem de mais bonito: sua poesia. A raiz grega da palavra – poiésis – remete ao lampejo criativo, ao insight, à criação. Traduz assim a beleza fulgurante e imprevista da arte. O futebol de várzea, longe dos simulacros da profissionalização, oferece essa condição em doses muito mais caudalosas que a sua versão mercantil, embarafustada de champions league, copas do mundo, libertadores, fifas e cebefes. Nele, a delirante beleza do instante enche de cor o marrom dos terrões, estabelece a música no encontro das canelas, cria um raio luminoso no encontro da bola com o fundo da rede estufada. A poiésis no futebol estabelece a possibilidade do estado transcendente, a chance da mudança repentina através do feito inédito, a surpresa sempre inusitada do acaso. A poiésis reafirma a beleza natural de uma arte genuína.
MM rima fácil a beleza do futebol praticado nos terrões varzeanos da região do ABC paulistano (onde vive e trabalha). Ele entende do riscado, tanto que define que tão importante quanto o craque é o caneleiro, o fazendeiro: “A vida seria muito mais poética se os homens de bem que habitam o mundo tivessem a dignidade de um perna-de-pau. O canela-dura é um onírico, um lúdico. Há nele uma honradez, uma decência quase comovente” ("A grandiosidade épica de Parrão e o blues do perna-de-pau”). Para o autor, pouco importa o resultado de uma partida. Vale mais a beleza de um gesto, a voz de um torcedor, a comoção de uma torcida, a lembrança de uma chuteira da juventude que ficou imortalizada na memória do homem maduro, a lambança de um beque turrão.
Mas ele manja mais, sabe muito de blues, jazz e rock´n´roll, essa tríade sagrada que os americanos lá do norte deram ao mundo. E tempera esse conhecimento com doses nada modestas da sétima arte. Assim, unindo suas paixões, cinema, música e futebol, tudo isso devidamente acondicionado na confeitaria das palavra que eles usa com muito tempero, sal e açúcar, temos em seu “Contos da várzea e outros blues” dezenas de belos e inspirados textos compilados a partir de sua coluna de toda terça no jornal ABCD Maior. Tirando da cartola sempre uma generosidade poética para ilustrar as suas andanças pelos campos do Grande ABC, MM mostra a beleza que fica de fora dos discursos oficiais. Ou, como ele mesmo define, “A vida na periferia é um livro para Louis Malle filmar” (“De Rimbaud para Wilde, o 10 do Casagrande”).



Serviço: 
 Livro: Contos da várzea e outros blues
Autor: Marcelo Mendez
Editora: Córrego
Ano: 2014 (1ª edição)



29.12.15

Entrevista: DANIEL CARVALHO (Literatura, educação e música) - São Paulo

Ganhador do Prêmio Paulo Freire 2015 (foto Marco Tito - arquivo Facebook)

Depoimento para o Portal R7  (foto - arquivo Facebook)

O volume II do Entre Versos Controversos (foto Lucas Barbosa)


Daniel Carvalho, que declara ter mais que as sete faces drummondianas, é poeta, músico e educador na zona leste paulistana. Mas só o entendemos mais integralmente quando nos damos conta que cada uma das expressões pelas quais se desnuda na verdade é sempre uma continuidade da outra. E que esse pleno exercício da cidadania (pois o múltiplo artista coexiste somente nessa condição, a de ser essencialmente um cidadão!) diversifica-se em vetores que refletem e indicam caminhos para a arte (e humanidade) possíveis, apesar dos percalços, reacionarismo e arbitrariedades.
Este depoimento, colhido numa conversa de quase um mês via inbox do Facebook, revela um ser integrado ao seu tempo e à vida, exalando o bálsamo da Arte.


1) Quem é Daniel Carvalho?
Daniel Carvalho... boa questão, estou há 26 anos tentando descobrir quem ele é... Responderia talvez com um trechinho de um poema que escrevi ano passado: "não sou o homem de apenas sete faces,/ pois, possuo uma face/ a cada amor,/ a cada dor, /a cada experiência." Talvez seja um sonhador que vive cada uma das faces e fases da existência.

2) Você é um músico que "encontrou" a poesia, ou um poeta que também pratica a música? Explique-nos como a arte substancia sua vida:
Comecei a estudar flauta doce aos 7 ou 8. Depois fui para o violão, guitarra e assim por diante. O contato com a poesia foi nas primeiras tentativas de compor música. Acredito que encontrei (ou fui encontrado?) a música primeiro. A poesia mesmo, o desejo de ser poeta, não sei bem onde começou. Lembro que meu primeiro poema foi, sem ser música, na faculdade. Depois dei um grande tempo em composições, fazia apenas música instrumental. Com um projeto de literatura que desenvolvi com alunos e alunas do Ensino Fundamental II, essa chama poética reacendeu e voltei a escrever poemas.

3) E a carreira no magistério, como surgiu?
Comecei a ensinar violão/guitarra aos 14. No final do Ensino Médio, tive professores que mudaram minha vida. Esses dois fatos me motivaram a entrar pra Educação.

4) O que você chama de "tive professores que mudaram minha vida"?
Professores cujas aulas lembro até hoje, aulas que me fazem refletir até hoje.

5) O que você gosta de ouvir? De ler? De assistir?
Difícil resposta (risos). Isso daria um bom papo que duraria horas. Acho melhor falar do que mais gosto, delimitar os principais (risos). De ouvir, gosto muito de uma banda chamada Symphony X, é de metal progressivo. Muito bem trabalhados os álbuns, músicos muito bons mesmo. Mas, gosto desde baião, jazz, rap, até o metal do tipo System Of A Down, então é complicado resumir.
De ler, caímos noutro dilema pra resumir a resposta (risos). Meu escritor favorito é Dostoiévski. Tenho todos os livros traduzidos para o português e acho fantástica a poética dele.
Sobre assistir... amo séries. E nem imagino como será o fim do The Walking Dead (risos). As que mais gostei até hoje foram Prison Break, Lost (sim, eu sei que era a maior viagem e é por isso que gostei) e Flashforward (certamente, a que mais mexeu comigo).

6) Você tem vivido intensamente o ambiente dos saraus e dos slams que acontecem na periferia. Conta pra gente esses fenômenos e as peculiaridades de cada um:
Ainda é difícil eu falar algo sobre essa nova experiência, pois é tudo muito recente. Eu fui levado a vida toda a negar minhas origens, negar a periferia, a acreditar que os "rolês" de verdade eram os que fazia na Vila Madalena, Paulista, ou em ruas do tipo "Aspicuelta". Os saraus de periferia e a literatura marginal me ajudaram a enxergar quanto é triste não nos reconhecermos em nosso território, em nossa casa, não nos reconhecermos em nossa própria história, discursos e cultura. Cada sarau, slam, etc., têm sua peculiaridade, mas o fio condutor de ambos é a voz periférica e de empoderamento de uma cultura, voz que todos parecem possuir em comum.

7) Agora conte um pouco da história do projeto Entre Versos Controversos:
O Entre Versos Controversos surgiu na EMEF Profº Aurélio Arrobas Martins. Uns alunos e alunas e eu nos reuníamos após o horário de aula pra cantar umas músicas, escrever uns poemas e, de repente, publicamos as duas coletâneas de poemas, começamos a participar de saraus, enfim... a história do EVC é longa e tão forte que nunca consigo escrever sobre ela direito (risos).

8) Como foi o lançamento do Vol. II do Entre Versos Controversos? E por que o subtítulo "O canto de Itaquera"?
Foi uma festa bem bacana. Fiquei surpreso com os alunos e alunas mandando os poemas de cabeça, sem precisar ler e interagindo com o público. "O canto de Itaquera" foi escolhido para mostrar o encanto que há no canto da nossa quebrada. O canto pode ter dois significados: 1) espaço físico, canto no sentido de uma região que fica à margem, e 2) canto no sentido de voz, de empoderamento.

9) E o que você está planejando para 2016?
Na verdade, não tenho nada muito certo. Não sei se o que tenho são planos, desejos, sonhos, etc. Preciso antes sentar, refletir e pensar. Acho que ainda não organizei meu tempo pra conversar comigo sobre o que pretendo fazer em 2016 (risos).

10) Tem alguma questão que gostaria que eu tivesse perguntando e não o fiz? Se tiver, faça-a você mesmo e a seguir responda. Grato!
Puxa! Já é difícil responder. Imagina perguntar (isso)
Talvez, uma boa pergunta seria "que é a poesia?". Eu responderia que poesia significa muitas coisas, mas a parte que me chama mais atenção é que ela pode ser um instrumento potencialmente humanizador. Ela pode nos ajudar a entender o mundo, a nós mesmos e o outro - que é e não é diferente de nós.

20.12.15

Um poemeu: "Agonia, infração, êxtase"


súbito no meio da radial
o verso explode dentro da cabeça
e mil estrelas bailam em mim
procuro caneta encontro a nota do combustível
mas por desaforo o semáforo não fecha
penso em gravar no celular
mas esqueci a porra do celular
fico cantarolando o verso
fecho o vidro pra ninguém notar o estado teso
e na falta de lugar melhor
estaciono na vaga do ônibus pra rascunhar