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28.7.16

Um poema: "sístole diástole"


escrever em todo minuto
escrever toda hora todo dia
o ano inteiro
a vida inteira
escrever cada vez menos
escrever só
o que é importante


27.7.16

Um poema: "ser estar ser"


toda cabeça que dói traz um certo prazer
vertigem
desculpa

toda dor de cabeça renova
a inocência que só os masoquistas têm

a cabeça sem dor é quase divina
e ser divino é um estado
humana pobreza

26.7.16

haiquase (exercício XIII)

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ultramassagem adiante

pare

Um poema: "devotos de são gererê"

os devotos de são gererê não fazem romaria
não vendem artesanato de máquina
bebem muito pinga barata e nunca
têm dinheiro


devotos de são gererê não pagam promessas
têm a fé cética dos notívagos
e o humor afiado dos tristes
vivem no maior miserê



devotos de são gererê
têm a língua afiada dos pedintes
a embromação macia e intransigente
e o vício dos viciados em si



devoto de são gererê vendem tudo pra viagem:
jesus, maomé, shiva
deus, judas, javé
buda, alá, jeová



devoto de são gererê é tudo chato
se me pegam pra cristo, fico jururu

25.7.16

Um poema: "a lei (pro forma)"

Charge de Rico (http://ricostudio.blogspot.com.br/2014/12/constituicao.html)

eu respeito
tu peitas
ele/ela reparte
nós repetimos
vós repelis
eles/elas peidam

24.7.16

20.7.16

Um poema: "sine qua non"

Brenda Serpas '16 (left) and Chris Zhang '18 study in the Eliot House library (http://news.harvard.edu/gazette/story/2016/02/a-look-inside-undergraduate-house-libraries/)


sós, poetas leem poetas

19.7.16

Um poema: "esquadrinhamento"

Lucky Strike, de Rob Scholte

morfologia das palavras
descascar o a, até o z
desbastar os excessos do s
revelar o sujeito oculto do h
tirar o gênero das vogais
deixar o alfabeto nu
até se vestir, de sentido


12.7.16

haiquase (exercício XI)

Foto Dan Masa (http://blogs.psychcentral.com/hollywood-therapy/2015/06/do-you-have-a-writers-personality/)

nem todo dia escrevo um poema
mas todo dia toda hora toda a vida
um poema me escreve

11.7.16

Um poema: "Cenas"



a pedinte me aborda na porta do banco
"dá uma esmolinha, pelamordedeus!"
o comprovante da transferência vem rubricado
"deus seja louvado"
ligo pra ele, que me diz
"graças a deus!", quando falo do depósito
ajudo um cego a atravessar a rua
"deus te abençõe"
no calçadão, em frente à lojinha do chinês
outro cego toca violão, gaita, bongô e ainda canta
frank sinatra, elis, elvis, dylan
peter frampton, os chicos e - ó, ceus! - janis joplin
deixo todos os meus trocados
ele não me agradece
eu que agradeço

10.7.16

haiquase (exercício X)

Foto Domingos Peixoto (O Globo)


um tom: vida flui
outro: a morte - túnel azul
entre: urublues espreitam

9.7.16

Resenha: livro "Guaracy" (Paulo D´Auria)

Paulo D´Auria em sarau na Casa Mário de Andrade. Foto do arquivo de Marco Pezão
Com as mudanças implantadas no currículo do magistério brasileiro no início deste século, e a consequente inclusão de estudos sobre África e índios brasileiros, observamos, no correr dos anos, o quanto isso permitiu que fossem traçados novos paradigmas a respeito da “história oficial” que antes era contada de forma rasa, sem compromisso algum com a veracidade dos fatos que agora vêm à tona.
Prova disso é essa obra apresentada aqui, o romance Guaracy, do escritor e professor paulistano Paulo D’ Auria. Tendo como protagonistas índios e negros, a trama estabelece uma visão fora dos estereótipos sobre o imaginário popular do Brasil, acentuando as contradições que compõem a história oral e o pluralismo do folclore nacional.
O enredo gira em torno da indiazinha cujo nome dá título ao livro, que no dia do seu aniversário de 10 anos, recebe do pajé Mbo’e-sara (que fazia 100 anos no mesmo dia), a informação de que o deus Tupã havia escolhido ela para ser a guardiã do Oîrã Monhanguara (“O Fazedor de Amanhãs”), uma ponta de lança feita de ouro. Este objeto mágico devia ficar protegido na aldeia Erekó-Ara Oka, ou “A Casa do Guardião”, uma das últimas remanescentes na cidade de São Paulo, na região do Pico do Jaraguá, zona norte da capital. 
Guaracy, com Iuatin, um amigo índio, e o menino Lucas, outro parceiro de aventuras, acaba vivendo grandes emoções, por conta da incumbência que lhe foi atribuída, fazendo viagens no tempo dentro de uma canoa encantanda, a Igaranhã. Assim, entre idas e vindas a tempos imemoriais, como a Era Glacial, e lugares inusitados, como a África antiga, os três vivem inúmeras situações de risco, ajudando a escrever a história, para que o futuro esteja assegurado. 
Para tanto, eles são obrigados a lutar bravamente contra o bruxo Bento Cornélius Blumenbach-Pinzón, um homem sinistro e cheio de más intenções que vive numa mansão no bairro do Pacaembu, em São Paulo e quer se apossar do amuleto de qualquer forma. 
D’ Auria constrói seu texto com vários elementos que dão muita vivacidade e ritmo à leitura. Assim, somos tomados por figuras da mitologia brasileira, como a Mula-Sem-Cabeça, o Saci Pererê e o Curupira, entre outras. 
O romance pode ser classificado como infanto-juvenil mas deve ser lido por todas as idades, já que é forjado com muita perspicácia no mundo da imaginação, permitindo um longo em torno das peripécias da turminha.

Serviço:
título: Guaracy
autor: Paulo D’ Auria
193 páginas - Edições do Tietê
1ª edição 2016

5.7.16

Conto: "5 heroínas"

Reprodução: http://osdozeolimpianos.blogspot.com.br/2012/11/habilidades-dos-semideuses_18.html

(* Texto feito especialmente para a oficina de criação literária "Inéditos & Inacabados", d´A Casa Amarela - Espaço Cultural (São Miguel Paulista, SP) em 02/07/2016, sob mediação de Luka Magalhães. A oficina tinha como mote construir um texto de qualquer gênero com o tema "herói")

No primeiro dia de aula ela conversava com a turma. Perguntou nome, cor preferida, o número da sorte, se gostava de doce e pizza, o nome dos pais.
Sara sentava no meio da sala. Quando a professora perguntou o nome da mãe, ela disse Eva e Dara. A professora não entendeu, então prosseguiu, “Eva e Dário?” “Não, fessora, Eva e Dara!”. “Ah, bonito nome. E o nome do papai?”
“Pai? Pai eu não tenho. Quer dizer, eu tenho o papai do céu.”
A velha mestra, quase aposentada, experiente e preparada para improvisos, calou por um momento. Seria abandono do lar, morte, não reconhecimento da paternidade? “E o seu pai da terra, minha linda?”, questionou com brandura.
“Nada, fessora. Esse eu não tenho. Não preciso.” Enfática, a menina sorria, prestativa e cândida.
“Como assim, não precisa?”
“Não precisa porque acho que não preciso, fessora!”
“Ah, tá... entendi. E você mora só com a mamãe? E com a vovó, também?”
“Não, a senhora ainda não entendeu fessora; eu moro com minhas duas mães, Eva e Dara. Tendeu agora?”
A mulher sentiu-se agredida pelas respostas retas da pequena. Desencontrada, procurava palavras para sair daquela enroscada. Levantou-se da posição incômoda que estava, respirou fundo, olhou a sala, alguns rostos prestavam atenção às duas. Endireitou o corpo, bateu nos ombros da menina e sentenciou as suas crenças:
“É... é melhor ter duas mães, do que não ter nenhuma.” Bateu de leve no ombro da menina e saiu andando. Teve vontade quebrar os ossos dela, de correr dali. Precisava passar por isso? Aquela menininha linda, esse diabinho, toda arrumadinha, isso é uma afronta! Filha do cão! De duas cadelas...
Chegou à mesa, olhou de soslaio para a pequena, que respondeu com olhar inocente e firme. Chamou a aluna da frente para se apresentar mas não prestou mais atenção em nada. A partir dali, viveu uma agonia dolorida, sem sentido, um mal estar lancinante. De repente, todas as suas certezas viraram de ponta-cabeça: realmente o diabo era mesmo um anjo de luz! E estava ali o exemplo mais concreto de tudo o que já tinha ouvido falar, diante dela, a assombração, a enviada do mal, a enganação. Poxa, mas tinha que ser no corpo de uma menina tão educadinha, tão bonitinha?...
Todos, ao fim, se apresentaram. Ela, ainda vexada com a menina de duas mães (toc toc toc na madeira...), finalizou o inquérito, pediu um texto sobre um herói da vida deles, queria ver como todos ali estavam de redação. Enquanto cada qual se debruçava para escrever o texto, ela pediu licença, saiu para tomar água. Precisava falar com alguém, tinha um demoninho simpático entre as suas crianças. Pensou em pedir à diretora que a mudasse de sala, não suportaria ficar um ano todinho com uma menina feita de um amor que não era amor, isso era uma modificação na ciência exata de Deus, uma aberração que vinha provocar suas convicções. Procurou na sala dos professores, na diretoria, na coordenação. Nada! Todos estavam ocupados, ninguém se daria ao luxo que ouvir sua queixa sincera. Encontrou no corredor a Zinha, mas tinha uma antipatia sincera por aquela professora branca que só sabia discursar defendendo negros, índios, sem terras e outras minorias. “Maiorias”, essa é que é a verdade. Falaria isso da próxima vez, caso a ouvisse discutindo esses assuntos menores. Menos importantes, sim, quer a outra queira ou não, pois não seriam discursos retóricos que modificariam a realidade dada. Todo o jornal, revista ou rede de televisão importante sempre se referiam a esses grupos como minorias. Será, por Cristo, que agora todo o mundo estava errado e só meia dúzia de radicais xiitas estariam certos?
Descontrolada, guardou silêncio quando passou ao lado da amiga, tomou um café na cantina e voltou. Entrou na sala e foi para sua mesa.
“Terminaram?”
“Nãããooo, professora!”
“Eu terminei”, gritou uma afoita Sara, exibindo a folha solta do caderno.
“Por que você arrancou a folha do caderno, gracinha?”
“Para entregar, fessora!” Sara tinha se levantado e caminhava na direção dela.
 “Não era para arrancar a folha. Eu ia corrigir no caderno. Faz o seguinte, volta lá e copia sua redação no caderno. Depois dou a nota.” Morreu de medo da garota aproximar-se dela.
A menina amuou, voltou e sentou, se concentrando na cópia. Quem estava desconcentrada era ela, sem entender porque tinha ficado tão desconcertada apenas porque uma aluna tinha revelado coisas que ela não aceitava como normais, coisas que ela não entendia muito bem. De repente, porém, tudo foi clareando. Alguma coisa estava errada, não se encaixava e – pior de tudo! – talvez nem fosse problema da garotinha. Deduziu com desconforto que o problema poderia ser com ela! A criança, ali, de cabeça baixa, escrevendo sua história de forma obediente, talvez – talvez! – não tivesse culpa alguma. Isso a desconsolou.
O sol invadia e cortava a sala com sua luz diagonal. O trecho oblíquo bem à frente da garota a deixava envolta numa auréola de pó, sob a sombra. O rosto contraído indicava devoção à lição proposta, escrevia com devoção alguma saga interior, sobre o heroísmo de alguém. Quem?
Mexeu-se na cadeira. Um calafrio tomava conta de seu corpo. Ameaçou levantar-se mas viu  que duas ou mais cabeças olhavam para ela.
“Que foi?”
“Nada, professora.”
“Então façam a redação que pedi, vai...”
“E você?”
“Não tenho herói, professora.”
“Ninguém pra você representa a figura de um herói?”
“Pode ser Deus, professora?”
“Deus pode, mas seria melhor se você pensasse no herói em alguém que fosse mediador entre Deus e os homens.”
“Como assim?... não entendi, professora.”
“Pensa em Deus como sendo algo maior que um herói. E pensa em herói como alguém que faz as vontades de Deus na terra.”
‘Ah, entendi....  obrigado, professora.”
“Agora todo mundo se concentra e façam a redação. Vão!”
Mas como pode, meu Deus? Como pode uma criança assim crescer ao lado de duas mulheres que dormem juntas, se beijam, se abraçam, tocam-se. Arghhh! Teve uma repulsa natural ao imaginar o amor entre duas mulheres. Não podia aceitar isso! E, pior!, sentia uma vontade sincera de odiar o fruto desse amor. Que fosse adotada, guardada num orfanato, num convento, na Fundação, mas, definitivamente, não podia aceitar que duas mulheres que se tocavam pudessem criar uma criança linda como aquela.
“Acabei”, e o braço esperto de Sara levantou-se.
“Eu também terminei.” “E eu.” “Eu também.”
“Esperem, ela primeiro. Vou corrigir e depois vou chamando um a um, tá bem? Vem, traz aqui!”
Recebeu o caderno com nojo, a menina ao lado, num riso idiota de ansiedade.
“Pode se sentar agora. Quando terminar de ler e corrigir, te chamo.”
“Obrigada, fessora!”
Uma ânsia quase incontida revirou seu estômago, quase vomitou. Respirou fundo, sentiu a garganta seca: fessora, fessora, fessora! Ai, eu assumo. Tenho nojo, muito nojo desse luciferzinho cheio de sorriso, de educação e beleza!
Sara voltou para seu lugar, sentou e passou a arrumar o material no estojo branco com florzinhas vermelhas e amarelas. Refeita da hipnose, ajeitou-se e iniciou a leitura.
O sinal tocou, a sala se dispersou na sua algazarra natural de intervalo, ela esperou todos saírem e seguiu devagar pelo corredor. Lia compenetrada.

Eu me chamo Sara, tenho 10 anos e sou protegida por duas heroínas. Uma se chama Eva e foi quem me “ganhou”, me trouxe a esse mundo, em sua super-barriga. Ela disse que quando estava grávida, cantou muito pra mim enquanto eu ficava nadando dentro dela, protegida pela sua pele. Ela também já me falou que enquanto eu estava lá, em sua barriga, teve um monte de desconfortos, como enjôos, dores de cabeça, vontade de comer coisas esquisitas, manchas no rosto e umas risquinhas na pele, as celulites, que deixaram ela mais feia, mas ela diz que não liga. A outra heroína que tenho se chama Dara. Foi ela que me protegeu do lado de fora da fortaleza, pois elas falam que a barriga de uma mãe é uma fortaleza, onde o bebê fica guardado contra todo tipo de monstrinho ou de maldade que possam aparecer.
Dara cuidou de minha mãe Eva quando nasci. E cuidou de mim também, deu mamadeira, trocou fralda, me ensinou a andar, a escrever, contou historinhas... E sobre as risquinhas na pele da minha mãe Eva, a minha mãe Dara vive falando que são um tipo de tatuagem que marcou minha chegada. E que por isso mesmo são marquinhas bonitas também. Ela que diz.
Elas também são heroínas pois além de cuidarem uma da outra, e de mim, também cuidam de várias crianças, pois as duas são professoras. Eu também quero ser professora quando crescer, pois quero ser como professoras, pois todas que tive até hoje são heroínas das crianças, cuidando, ensinando e confortando. Minha mãe Eva é professora numa escola que fica em uma favela, lá do outro lado da cidade, onde ela cuida de várias crianças de minha idade. Ela diz que cuidar dessas crianças que às vezes não tem pai, nem mãe, ou até nenhum dos dois, é proteger o futuro. Não entendo o que ela quer dizer, mas deve ser alguma coisa muito importante, pois ela faz de tudo pras essas crianças. Às vezes ela nem brinca comigo no feriado ou no domingo, só pra ficar preparando a aula do outro dia. E eu até ajudo ela, popis ela gosta e pede nossa ajuda. E a gente se diverte.
Já a minha mãe Dara dá aula num lugar onde crianças que fazem algum tipo de maldade ficam presas, sendo educadas por ela para que quando voltarem aqui pra liberdade, se tornem boas crianças como eu tenho sido. Ela que diz.
Eu acho que elas têm dois deuses diferentes, cada uma tem o seu. E me disseram pra não se preocupar que depois eu descubro qual deles é o melhor pra mim, pois, apesar dos nomes diferentes, são um só, que é o nome do Bem. As duas vivem me dizendo que o importante é ter liberdade pra escolher e seguir o coração da gente. Elas nunca brigam, são sempre amigas, e vivem se abraçando, e me abraçando e me levando pra passear, e assistindo séries e filmes comigo, fazendo cosquinha e até brincando de soltar pum debaixo do cobertor. A gente se diverte e eu dou muita risada com elas.
A Dara disse uma vez que ser feliz é um tipo de heroísmo. Foi por isso que fiz essa redação
.”

Quando o sinal tocou para a volta do recreio, as crianças ficaram um tempo a sós na sala até que a diretora entrar e avisar que a professora não viria dar mais dar aulas, pois tinha surgido um problema. E que outra viria pra substituir já já.
“Ah, e quem é Sara?”
“Sou eu!”
“Seu caderno, lindinha. Ela pediu para entregar pra você. Parabéns! Parece que você tirou dez!”



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