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30.12.12

Cronicazica: "Elucidado o Enigma de Machado"



Eu, Escobar, confesso: sou o pai de Ezequiel; fiz esse obséquio a Bentinho. Em suma, eu comi a Capitu.
Você que enxerga a vida com olhos puros, que não se consola diante das injustiças que se amontoam e atropelam no cotidiano, “que ´engole em seco´ com as inverossimilhanças ficcionais diante da vida real, por favor, há de me perdoar! Fodi o machado, agora fodo o ´de assis´. Ele que se recomponha, com sua escrita de ressaca, com suas palavras oblíquas e dissimuladas.
O mundo atual, todo virtual, em sua célere decadência, a priori, dirigida à digestão fácil, não nos permite agora qualquer tipo de assomos barrocos. Convenhamos, estamos muito mais devotados à brejeirice parnasiana, sem sequer a forma dela; e temo hoje como inevitável a facilitação de tudo: da saúde, do discurso, do entendimento, da moral, da jurisprudência.
Faz mais de 100 anos que Bentinho veio a lume falar o que bem entendia e ´como entendia´. Eu não, só agora na era dos blogs, nesses tempos de efêmeros superficiais, de superlativos banais, somente agora pude vir à luz – ó contradição! – para falar o que penso, ´como penso´. Dizer o que fiz, ´como fiz´.
Capitu ainda não, coitada! As mulheres já queimaram sutiãs, já votam (e voltam atrás), já dirigem automóveis, lares e empresas (às vezes tudo ao mesmo tempo), mas ainda comemoram essa benevolência masculina, o 8 de março. Por ora, minha querida Capitu ainda não ganhou as tintas que merece. Espero sinceramente que não demore mais 100 anos para isso, pois ela está enfastiada, não vê a hora de pegar o microfone e bradar o seu grito. Pois sendo mulher demais para o seu tempo, o Brasil e o mundo não poderiam jamais entendê-la, isso é óbvio. Fizeram com ela o que sempre fazem com as mulheres que ousam estar à frente: colocaram-na na fogueira da inquisição. Que inquisição? Oras, a que você quiser, do patriarcado, da escravidão, da injúria, da redução sexista, não importa; pralguns, o que vale é colocar a mulher ´no seu devido lugar´. Ela, justamente ela que, vamos ser sinceros!, era bem mais inteligente que meu amigo, que este seu amigo; mais altruísta e menos démodé; mais sociável e menos sociopata; veja bem o caldeirão quente em que se meteu. Ela merecia sorte maior, ela merecia eu!
Pois o Bento tinha um problema, era “afetado demais”. Não diria gay, se bem que... bem, deixa pra lá! Temo ter que recorrer a Platão, talvez Freud, ou Lacan, para explicar o que se passou entre Bentinho e eu.
Mas o que vocês devem estar se perguntando é “o que é que esse filhadaputa fez, traiu a confiança do melhor amigo, ora essa?” Não, eu não traí a confiança dele, que me era superior ao que uma amizade entre seres que se podem devotar. Meu querido Bentinho era um verdadeiro gentleman, um dândi fluminense, apaixonado demais pelo personagem que a si se criou. Era um Narciso que achava feio o que não lhe é espelho. O exercício ególatra era onde ele se regalava por completo. Ficava entorpecido pela bebedeira de seu humor flanelante.
Se ele amava Capitu? Claro, mas não mais que suas dúvidas, ruminadas na insegurança. Ele foi um autêntico homem mediano, em meditação constante na faculdade de seus meio-termos. Eu, ao contrário, sempre fui apaixonado pela exatidão sagaz, pela ciência do lucro, cioso de vitórias e conquistas. Quando ele precisou de um conselho, eu o dei; quando inquiriu-me sobre decisões, eu as tomei por ele; quando ele contraía dúzias de dúvidas, era eu quem pagava, inclusive os juros.
Sendo Capitu mulher demais e seu marido homem de menos, cheio de querelas existenciais, acabamos por nos ajustar ao tempo, às condições inexatas das paixões febris, e ao desejo inflexível que nos assalta quando na vida as coisas conjugam a nosso favor: amamo-nos. Amei Sancha, amei Bento, amei Capitu; e amei Ezequiel, filho desse desassossego plural entre pessoas vinculadas pela extrema amizade, circunstância concordante e zelo fraterno.
Agora, seu juiz, é preciso que se faça justiça, doa a quem doer. Por isso proponho que se chame agora a senhora Capitolina Santiago Franelas para depoimento.

18.12.12

5 poemeus

"Às Avessas"

alergia: a

versão disforme

no espelho: alegria



"Poema Quadrado"

Dói aquela aquarela

onde paira um adeus.

Flor à janela



"Poema Agnóstico"

deus é

aquilo que você pensa

que é



"Angu Cool"

poderia ser angústia

de rima fresca

(mas basta-se fomepoema)



"Superlativo"

todo amanhecer é hipérbole

metáfora

(anoitecer é redundância)

16.12.12

Cronicazica: "Como escrever poesia"



Como escrever poesia

Hoje cedo, no meio de uma feira, entre bananas e abacates, me peguei pensando sobre como faço poesia. O vendedor de tapioca continua o mesmo, um bigodão vetusto e encardido – deve ter fumado a vida inteira! – a sua iguaria, uma delícia. E eu pensando como pratico meus versos.
Não lembro se foi antes ou depois de comprar o alho – talvez a cebola? – que repentinamente uma dúvida foi lançada: o que escrevo primeiro, o poema ou o título? Tenho certeza de que não tinha comprado o tomate, mas a questão que me assistia naquele momento era essa, “quem, em mim, nasce primeiro?”
Sei a resposta: enquanto pegava as mexericas, provava uma jabuticaba e pedia um pastel (de carne, hein!) e um caldo de cana (com abacaxi, limão e duas pedras de gelo!), lembrei que quase sempre o título vem primeiro. Não sei dizer porquê, mas quase sempre é assim, em uma idéia de determina o que vai ser escrito depois. Só depois de pesar as goiabas é que pensei que após o nome é que meus escritos ganham roupas, contornos e formas. E o principal: sua alma.
Não é compulsão nem mania nem nada, apenas uma prática que sei fazer. O título me assalta a idéia e fica caraminholando, até que seus filhos nasçam. Tudo bem que às vezes acontece o contrário, tudo bem que às vezes o nome é até bonito, mas estéril, não gera nada, só sirva de base para desenvolver uma idéia e depois seja trocado na hora de seu batismo. Tudo bem que às vezes vem uma montanha de versos abaixo, mas nada surge no horizonte que sirva para “vestir” essa população de signos e sentidos e dê a eles uma identidade.
Pois creio que título é isso: síntese. Tanto que às vezes acontece do nome chamar essa enxurrada de palavras que depois será poesia e terá outro nome, pois alguma coisa aconteceu, uma guinada foi dada no meio do caminho, e o título – que tinha sido a causa de toda essa “grita” – repentinamente não se aplica ao que foi deveras escrito. O primeiro terá sido apenas “boi de piranha”, pra chamar os versos que estavam represados em algum lugar, à espera do chamado à vida. Queria lembrar agora quem foi que disse que a escultura sempre esteve lá, dentro do bloco de pedra. O artista é “apenas” aquele que vai “tirar a gordura” dessa pedra, seus excessos, para que a figura, a imagem, o signo, o sentido, surja para a contemplação de todos. Acredito que a poesia que escrevo tem esse sentido. Escrevo tirando os excessos que permeiam pensamentos, reflexões e sensações. A poesia surge em mim justamente para desbastar, limar, lapidar, limpar e sublimar o que penso, ou, pelo menos, julgo pensar.
Foi assim que terminei minhas compras, paguei o “flanelinha” que tomava conta do carro e voltei para casa. Pois a feira foi meu poema. Sair de casa foi um título primário, saciar minha fome de frutas e legumes tornou-se o título final.

publicado originalmente no jornal O Grito Cultural (São José dos Campos, SP), edição 30




12.12.12

Um poemeu: "Noite de São Marcos"



Noite de São Marcos

Todo o espetáculo parece preparado

para seguir um roteiro prévio



Alguns artistas, no entanto

jazzistas de mãos cheias – e santas

insistem no improviso:

a arte improvável

a mais humana

arte genial e geniosa

casada com o acaso



Arte a se completar
e ter na mente

de tão perfeita, completa, complexa


Posta de lado, acima, dentro


À parte: Arte



 Caricatura de Julinho Sertão (http://esporte.uol.com.br/album/futebol/2012/12/11/cartunistas-homenageiam-marcos.htm#fotoNav=19)


10.12.12

Sarau Agora ou Nunca - Erivaldo dos Santos na Casa Amarela

Eu, justo eu, que adoro uma roda de conversa, principalmente sobre literatura e cinema (minhas paixões), tive que bancar o advogado do diabo ontem.  A Casa Amarela - Espaço Cultural hospedou neste domingo, dia 9, o professor Erivaldo dos Santos. Meu parceiro desde a adolescência, quando discutíamos Sartre, Nietzsche, Freud e Jung pelas ruas do Jardim São Pedro, Eri - como é conhecido entre os íntimos - marcou presença no mix de sarau e roda de leitura "Agora ou Nunca". O evento foi criado e pensado justamente para recebê-lo, já que está de partida para Portugal, onde vai ministrar palestras na Universidade de Lisboa e, possivelmente, também em Hamburgo, Alemanha. O inusitado da festa foi que ela ficou claramente dividida em duas partes e acabou durando mais de cinco horas (isso mesmo, 5 horas!). Aí, aí justamente aí, tive que descer a cortina e encerrar o oba-oba, que ameaçava enveredar noite afora, madrugada a dentro. Passava das nove da noite.
Para embaralhar ainda mais a coisa, o livro dele, "Citação e Alusão nas Cônicas Machadianas - Estratégias de ler e escrever pelo avesso" - na verdade, sua tese de mestrado pela PUC-SP - foi lançado no sábado. Logo, por conveniência, o domingo foi uma continuação do fim de semana produtivo do também poeta, dramaturgo, ator, artista visual, músico, cantor, blueseiro, enólogo, alagoano, palestrino e outros quetais.

O pessoal foi chegando, alunos seus, frequentadores da Casa Amarela, outros convidados, todos bebericando o ótimo vinho que o próprio nos trouxe. No primeiro momento, ele discorreu sobre o objeto de sua análise, Machado de Assis e o uso estratégico do Sermão da Montanha bíblico como elemento constitutivo em suas crônicas. Interagindo principalmente com Tiago Araújo (ambos, puquianos, apresentaram diversos pontos de convergência e alguns poucos, e pequenos, "estranhamentos" interpretativos), a conversa acabou descambando também para outros assuntos que fazem parte do métier do artista: educação, produção literária, cinema e literatura, histórias de vida. E assim, todos ali, eu, Akira, Silvio, Iolanda e Zé Carlos, Vinicius e a musa, Zulu (cantando "a capella") e a musa, mais Mah Luporini e uma porção de convidados fomos brilhantemente inseridos no mundo machadiano, pela linha teórica de Erivaldo dos Santos.
O não imaginado, o não previsto, porém, era que após o término do encontro, as pessoas todas ali (poucos tinham ido embora, outros tinham chegado), todos jogando conversa fora, regada a vinho, amendoim, café, água e suco, a roda aos poucos foi ganhando forma novamente. Em poucos minutos, tudo tinha virado um profundo debate sobre a produção artística local, políticas públicas, meios de difusão e distribuição, entre muitos assuntos colocados na ordem do dia.
A conversa acalorada surgiu naturalmente e seguiu um curso sinuoso, com muitos apontamentos críticos que surgiram no esteio das discussões. Lembranças foram contadas, histórias relatadas, dúvidas suscitadas, encaminhamentos direcionados. Manogon, Tião Baía e Selma, recém-chegados, também ajudando a dinamitar e fundar novas perspectivas para o fazer artístico e cultural na região e outras periferias. Com tanta motivação, minha grande dificuldade foi conter os ânimos e arrumar um jeito de finalizar o encontro, o que fiz, sem talento algum, confesso.
Pra variar, chegando em casa, me dei conta da mancada genial que dei com o poeta Manogon, que tinha subido da praia direto para o sarau e trouxera um belo texto, meio-termo entre conto e poesia (seria prosa poética? seria poesia em prosa?). Como ele chegou no fim da palestra inicial, guardei comigo e fiquei de dar algum encaminhamento, não tinha mais clima pra leitura, ponderei erroneamente. 
Quando, meia hora depois, rolou o improvável segundo tempo de conversa, esqueci o belo texto dele dentro de minha agenda. Manogon, cordato e diplomático, não me cobrou o que eu displicentemente guardara e sua história hilária e poética não pode ali ser compartilhada.
Para tentar reparar o erro crasso que cometi, divulgo o mesmo aqui abaixo:
 


"Ubaldo, Badinho, Badí"

- Ei, você, viu Badí?
- Olá, onde ele está?
- Ui, ai, aonde Badí vai?
- Menina, corre aqui, vá chamar o meu Badí. Diga-lhe que estou aqui, aflita, com a gota atacada, andando torta, desajustada.
- Seu Zé, me faz um favor? Apelo ao Santo Nosso Senhor, que o senhor vá na carreira buscar Badí. Vê lá na goiabeira, fala pra ele não dá bobeira. É que eu já ando na tremedeirade meu Badí fazer besteira.
- Homem, por onde Badí se enfiou?  Pegou outro rumo? Evaporou? Eu estou aqui nesse batente, a perna dói, me bate os dentes, sinto afluição, fico dormente.
-Ah, dona Maria, me pega aquela bacia que eu vou jogar sal grosso, rezar Ave Maria, pedir pra todos os anjos que façam lá seus arranjos, mas me tragam meu Badí, nem que seja aos solavancos.
- Corre Nina, voa Nino, depressa Jair, chama logo meu Badí, que eu não aguento mais saudades do meu rapaz.
- Badí... Badí...Badí...
Mas Badí não ouviu. Ninguém sabe ninguém viu. Só um corpo boiando no rio. Sem lenço nem documento, sem nome nem sobrenome. Nem ao mesno um ser humano, um fulano, beltrano ou ciclano, que fosse bolar um plano de tirá-lo dali, de levar o pobre Badí.
Badí que nasceu Ubaldo, mesmo nome de seu pai, que ganhou o mundo e não voltou mais. Virou Badinho, por causa da mãe do padrinho, que lhe enchiam de carinho. Devido à priminha Gabi, virou de vez o Badí, que vivia aqui e ali.
Badí da mãe querida, por causa de uma ferida, de doença envelhecida, viva vida sofrida. Só tinha mesmo a Badí, a quem recomendava estudar para sair dali. Mas Badí com isso não dava. Fugia, corria pulava, jogava bola e fumava, e até birita tomava.
Porém, mesmo assim, erra bom esse Badí. E a tragédia que conto aqui foi porque ele, junto dos amigos peladeiros, pulou o quintal do Teobaldo, velho sisudo e malvado, só para pegar caqui. Teobaldo nem pensou, chamou os cabras e mandou que daquilo eles cuidassem. Foi o que se passou. Foi na covardia, no meio da gritaria, enquanto Badí corria, que a bala no ouvido zumbia. Com um tiro no meio das costas, tombando no meio da bosta, Badí morto caía.
- Badí... ah, Badí... onde está o meu Badí?
Mas Badí não ouviu.
Seu corpo bóia no rio.
 Manogon - Manoel Gonçalves