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22.4.18

Um textículo: "moto-contínuo"


o mendigo bateu em meu portão,
"um poema, pelamordedeus!"
abro a porta, atendo ele
uma testemunha aproveita e me mostra o paraíso
de relance
depois me pergunta se tenho um minutinho
digo que não

à mesa, pergunto ao garçom se tem rimbaud
o garçom me oferece aimé 
me deleito com um hermeto 1979

faz frio nas ruas 
vestido de oiticica, pergunto a pirandello
"que aconteceu? por que está em silêncio?"
"tô na minha, ceciliando"

a cigana pede para ler a minha mão
dou a ela dez reais e ganho
um amém, um axé e um namastê

viro a página, dobro a esquina
tropico na própria sombra
sempre à frente de mim
caio mas não desmaio
ressuscito sempre antes do fim

15.4.18

Uma cronicazica: "a dor, sempre"


A dor maior desse domingo não é pela minha solitária solidariedade ao Lula, mas à visão nada elogiosa sobre o comportamento dos contrários. Ao comportamento maquiavélico e parcial da imprensa (atrás de seus principais veículos, Globo, Folha, Estadão, Época e Veja), somam-se os vômitos, comentários de redes sociais e portais de notícia. Os pensamentos retrógrados e a agressividade fascista agora multiplicam-se como capim.
A dor dessa semana piora mais ainda quando mais se acentua a certeza de que uma dança macabra é conduzida por essa ópera funesta. Não bastava "impitimar" com acusações sem provas uma presidenta legitimamente eleita, mas também inviabilizar a candidatura daquele que simboliza a utopia maior no campo das conquistas políticas e sociais.
A dor desse mês vai além, quando notamos um trator liberalizante passando sobre tudo e todos. Do solo brotam grãos que servirão primeiro as mesas de fora, os que sobrarem serão jogados ao largo da casa grande, para que os muito famintos se matem na divisão do pouco que sobrou.
A dor desse ano é perceber que ninguém se deu conta que a revolução não será digital, nem romântica, pelas redes sociais. A internet é controlada pelas grandes corporações e estas nunca jogarão contra governos que retroalimentam um sistema que se mantém firme pela capacidade de poucos submeterem muitos ao jugo. Sendo assim, a sobrevivência só será possível com a luta nas ruas, com muito suor e sangue. E lágrimas.
A dor dessa vida é compreender finalmente que participamos desde sempre de uma luta desigual. O consolo é saber que nunca foi diferente. Apenas em curtos trechos da história, as vitórias das classes dominadas foram concretas, quando estratégicas, tenazes e perseverantes.
Estamos redescobrindo, da pior maneira, que o díptico paz e amor são ótimos para compor lindos versos e inspiradas canções. Nesse momento, apenas isso.


da série crônicas fictícias

13.4.18

Um textículo: "era uma vez um roteiro"

era pra ser a história de um superman nacional, dublado por truman capote. 
personagem mal desenhado de um desenho mal animado, num argumento mal disfarçado sobre o plano de abrir caminhos para os dominadores da terra plana. 
acanha, o primeiro capitão do mato, cumpriu seu papel e foi abduzido. 
triste fim de que vilões travestidos de heróis, todos com prazo de validade.
tsc tsc tsc até os super-heróis daqui são figurinhas grotescas, cópias mal acabadas.
risível saber que o complexo viralata na verdade é um raivoso cão pastor dos jardins, leblon ou alphaville latindo pra catataus da cidade tiradentes, rocinha ou grajaú mas transmuta-se num dócil pato diante da águia.

antes levavam a cruz e a espada. agora vêm com a cruz, a espada e a toga.

12.4.18

Um textículo: "olhai por nós"


"Olhai por nós. Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando no ar, e não tem como prendê-las. Não adianta tentar parar os meus sonhos, porque, quando eu parar de sonhar, eu sonharei pela cabeça de vocês e pelo sono de você. Olhai por nós. Eu não pararei porque não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de vocês. Olhai por nós.”

* Olhai por Nós é o título de uma obra grafada em 2018 numa das paredes do Pateo do Collegio, em São Paulo. O texto complementar é um excerto do discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, SP, em 7 de abril de 2018




imagens de internet

9.4.18

Um textículo: "música, pastel e caldo de cana"!


Na minha infância, duas situações marcaram profundamente as manhãs de meus domingos: os programas de música caipira que passavam na tv (minha mãe adorava) e as idas à feira, onde ganhávamos pastéis de vento. Naqueles dias que providencialmente caíam após o pagamento, às vezes ganhávamos um pastel de carne e em momentos de fartura à beça, até um caldo de cana era-nos permitido, e ficávamos (eu e meus irmãos - mas creio que meus pais também), inundados pelo acesso quase livre aos prazeres do paraíso gustativo.
Das músicas que preenchiam as ensolaradas manhãs, ficou tatuado em mim esse profundo respeito pelo cheiro de terra molhada e o aroma de café que emanam até hoje quando ouço Inezita Barroso, Trio Para Dura, Almir Sater, Irmãs Galvão e Pena Branca e Xavantinho. Ainda agora uma dor florida aliada a um repouso desassossegado ecoam em mim quando Belmonte e Amaraí cantam Saudade de Minha Terra. Ou rio desavergonhado quando Inezita despeja a Marvada Pinga em meus ouvidos. E o Cio da Terra então? Deveria ser tombada como patrimônio histórico.
Obras de arte são atemporais.
Pastel de carne e caldo de cana gelado também são obras de arte. Cada mordida ou gole é um sortilégio único que carregamos para sempre dentro de nossas lembranças afetivas. Morder um pastel hoje traz à memória cada detalhe vivido há 40, 30, 10 anos. Traz à tona o perfume salgado e quente de domingo passado. E cada sorvo no copo verde de bigodinho branco traz consigo o doce do açúcar de todo esse tempo, que passa, que fica, que mora na paisagem de nossa memória.
E se hoje a saúde inspira cuidados e exige certos comedimentos, não se trata de resmungar com o destino. Convém curvar-se à soberania desse tempo, que traz consigo o diálogo sempre antagônico e nunca concluído entre deus e diabo, o bom e mau, o bem e o mal, o crédito e a cobrança.
Esse talvez o mistério - portanto, a beleza - daquilo que orquestramos na vida: o tempo é uma sinfonia que carrega em si a brevidade que, com suas notas únicas, criam a ideia de eternidade, essa que estamos vivendo agora.

8.4.18

Um textículo: "advir"


os versos não estão escritos
naquele corpo estendido no chão
nem nos olhos nem nas lágrimas 
da mulher que chora

os versos, mermão
estão escritos nas sementes
ainda não germinadas

depois que a mulher parir
depois que a terra parir
o primeiro verso começará a ser escrito

há de vir o dia 
em que o poema dirá solene
estou pronto
me escreva

4.4.18

Um textículo: "insólito"



Ele tinha uma obsessão, flertar mulheres acompanhadas.
Era o seu improvisado exercício diário.
E antes que alguém me pergunte se teve um fim trágico, informo que foi feliz algumas vezes.