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31.3.19

Um textículo: "as certezas de lampião e maria bonita"


mulheres são perfume
homens são pêndulos
mulheres são de seda
homens são jeans

aonde ela está
ele não estará
onde ela está
flui a fantasia dele
prostra a adoração dele

aonde ela está
frui o prazer dele

a mulher, quanto mais ela
mais projeção dele

ele, quanto mais ele
mais as certezas e os medos
dele

30.3.19

Um textículo: "anacrônica"


ela decidiu vestir o jardim
e foi um tal de por luva na roseira
e uma toca no jasmim
e meias nas samambaias
óculos nas papoulas
saia na orquídea
lantejoulas na violeta
cachecol nas hortelãs
perfume na dama da noite

na outra manhã
o girassol  retratou à luz
o delicado duelo da noite
entre a flora
doidamente humana

29.3.19

Um texticulozinho: "tintim por tim-tim"


Talvez tenha sido assim: "E viveram felizes para sempre". Mas antes, logo depois do "era uma vez", tiveram um longo período de lutas e privações, até chegar e superar o clímax final. 

28.3.19

Um textículo: "prazeres da carne e outros prazeres"


poesia como iguaria
poesia caça pesca flerte festa
poesia piscina campo praia 
poesia que não rima, no entanto 
que chora que ri que vaia
aplaude alude derrota
poesia especiaria
de sabor de aroma, textura e forma
poesia au passant, com sex-appeal,
enfant terrible, colhida de virgílio
nos campos de trigo, em certo abril
poesia sonho vigília ilusão
poesia de salomão, poesia helena
tudo poesia, todo poema

Um textículo: "as ruínas de salomão (a fortaleza das rimas viciadas)"


se fosse alguma coisa
tipo um autorretrato
mas não 
é apenas um verso fraturado
esquimose no artigo 
indefinido, labirintite
entre as vogais
incontinência verbal
esclerose no substantivo
um poema amputado

um vaso chinês
em cima do aparador
desequilibrado

um olhar cercado de rugas
por todos os lados

24.3.19

Um textículo: "tonéis e música"


as caves de vinho tinto
sisudas mas bem-moradas
rotundas e embriagadas
esmaecidas pelos sons 
de diversos silêncios
que guardam o tom e os tons
museus da desmemória
embriagadoras
não têm uma réstia
uma simples notas de sol
(mi menor)

mal menor

Um textículo: "lírico fim dos tempos"


o vento vinha
com seu olhar frio
o rabo nervoso
a flatulência dos tsunâmis
o arroto dos maremotos

o vento vinha
com esgares de ódio
peito inflado e teso
ouvidos moucos pros gritos
joelhos dobrados a esmo

o vento vinha
com o hálito dos tufões
boca seca de sal e sol
os passos de terremotos
e o abraço sem graça
as tempestades do sul

o vento vinha
trazia declarações de amor
nas gargantas dos cânions
nas piscadelas dos relâmpagos
no microfone grave dos trovões

o vento vinha
com o inferno dos invernos gelados
a incontinência dos furacões
e o delirium tremens
do copo caído, vazio, quebrado.

23.3.19

Um textículo: "a vida é xadrez"


a tinta seca, a lama 
dos pés dos peões
os caminhos oblíquos e dissimulados em que
os bispos se perdem e se vão
o bambu verde em volta das torres
que verga e não quebra
frascos ao mar, cheio de lágrima agridoce
o cimento fresco da coluna cervical da estátua
a cal jogada ao pé da mesma escultura
pra mumificar as formigas aposentadas
a estátua estanques, jogador quieto
em alvoroço interior
o ódio arregalado sem pintura
nas retinas vermelhas dos cavalos ameaçados
o chá mate que mata com ervas e capim santo
o rei que o bebe, a rainha aplaude
antes do arremate, "xeque-mate"

22.3.19

Um textículo: "os analfabetos"


Temos o analfabeto: aquele que não sabe ler.

Em menor número, temos o analfabeto digital: aquele que não computa.

Temos também o analfabeto funcional: aquele que pensa que lê.

E temos em quantidade considerável o analfabeto poético: aquele que pensa que lê, não vê nem o óbvio: aquele que pensa que pensa.

21.3.19

Um textículo: "poema-exultação"

Exulto de alegria quando o salário não paga todas as contas

Exulto de perplexidade quando dois e dois dá cinco

Exulto de criatividade quando meu poema emperra no último verso

Exulto prazer quando brocho em motel caro

Exulto de originalidade quando repito fórmulas puídas e remendadas

Exulto de arrependimento quando silencio

Exulto de fé quando duvido

Exulto de saudade quando esqueço

Exulto quando exalto

20.3.19

Um textículo: "tristetíssimo"


não há morte melhor
que a morte fast-food
rapidamente vivida
celeremente degustada
celebremente esquecida.

a morte lenta é pior
mais ruim que as coisas ruins do mundo
inaugura a socialização da tristeza
e o vexame da espera.

a morte fast-food é comida em pé
com os olhos na grande tela
os pesares pesam o  minuto necessário
e o epitáfio encomendado ao secretário.

a morte fast-food é forward


19.3.19

Um textículo: "meu credo"


escrevo escrevo escrevo
escrevo sem parar
só paro de pensar para meditar
medito escrevendo
escrevo meditando

faço o que consigo

18.3.19

Um textículo: "selvage ria"


os postes das avenidas da periferia
são pés de uma só jabuticaba
solitária e amarela.

quando as lâmpadas queimam, a fruta
cumpre sua sina de ser breu
e meus pés inquietos seguem caminho
poste a poste, pé a pé
pretoamareloamarelopreto
preamar torelo

e na extensão do olhar
tudo se torna uma única árvore
uma única floresta

17.3.19

Um texfículo sem título


leve mente

                      sigo 
                               vivo

                                       a
                                       pesar

16.3.19

Um textículo: "van"


P(r)intando a dor de Van Gogh 
- em vão? – 
somos irmãos: eu, ele, nossas mãos. 
Em louvor 
ar te são.

Um textículo: "momento dolores"


as dores de amor são as mais doloridas.
as de prazer as mais curtidas.
as dores à noite são mais pesadas.
de tarde as mais afiadas.
as da manhã as mais difusas.
as da vida toda as mais confusas.

14.3.19

Um textículo: "falso sambinha"


não sei o que essa cabeça andou pensando
nada sei desse coração calado
por onde essas pernas perambularam
e essas mãos contidas pelas regras e as rezas

tampouco o que os olhos viram
menos ainda o que as bocas mastigaram

é tão triste essa festa
tão contrária do falso luto

mas o poema aí está
só não vê quem não lê
com a pele

13.3.19

Um textículo: "sinta-se"


os meus sentires transitam
entre tudo o que sou
e onde estou

aonde vou
levo sensações 
e trago outras comigo

posso ser verbo sem ação
predicado desqualificado 
e sujeito indeterminado
condenado a ser alguém
mesmo sem querer

12.3.19

Um textículo: "entrelinhas"


quando você me lê
é que me permito pensar: o que ela pensa?
ouso responder
ela me lendo fica nua diante de meus olhos atentos
passo um scanner em seus olhos
diante das palavras que pronunciei 
e, principalmente, entre
ditas
é lá que você está 
entretida

10.3.19

Um textículo: "a antibússola"


o mar está cheio, você me diz. 
o mar me desassossega, ouço.
o barulho do mar pacifica, digo.
digo sem convicção pois a dúvida
está instalada aqui
e o ceticismo cria um mar dentro da gente

o mar é todo água
água de transportar a toda parte
de dissolver as certezas da gente
de nos levar a preamar

o mar
ou amar
é que é
um criadouro de emoções

9.3.19

Um textículo: "a água e o sol"


a manhã nasceu fogueira
bocejou espreguiçou
abriu a cortina do céu
e foi botar água pra fazer um cafuné

o cheiro que subiu
inebriou a terra
fez cócegas no colo da tarde
e despertou o sono da noite

cheiro de cio 
de terra orvalhada
abraçada aos raios de sol
a mais íntima das umidades
que descabelam as nuvens
e fazem chover 

o vapor que sobe ao céu
como uma invocação
um incenso
disfarça escurece esfumaça 
oferta a deus, atrasada

8.3.19

Um textículo: "epígrafes"


lau certa vez escreveu que trotsky
dizia que maiakovski transitava
entre a genialidade e o senso comum
ou algo assim assim
- claro! - 
foi imortalizado pela genialidade
ainda que
sua obra 
como toda obra superior
comporte poemas menores

(parece eu
diante do espelho
espantalho e alumbramento
olhos nos olhos
buscando reconhecimento)

7.3.19

Um textículo: "manhã de cinzas"


Crescido em uma casa em que os pais eram evangélicos, ainda que não praticantes, era incompreensível para mim, na infância, entender os regramentos católicos assim como de outras religiões. Esse o mal do fundamento dogmático e da falta de multiplicidade de leituras do mundo, que impede uma visão ampliada, plural, da vida.
Menos mal que na adolescência fui me livrando das amarras doloridas das exigências cristãs e fui penetrando aos poucos no mundo misterioso e imaginativo de outras crenças. O candomblé, por exemplo, talvez por ser tão execrado em família, sempre exerceu uma espécie de fascinação nesse escriba. As religiões indianas, idem. Também as outras formas dialógicas com o divino propiciadas por outros cultos de matriz africana. Na verdade, todas as expressões religiosas não teocráticas me chamam a atenção, até pela complexidade de leitura. No momento, tenho dirigido atenção especial ao xamanismo dos povos da floresta, uma aula de deleite espiritual em correspondência com os eflúvios da natureza.
Contudo, depois de conviver com essa oferta enorme de valores espirituais, racionalmente percebi que o que mais me apraz é justamente o não acreditar em nenhum ser divino, não delegar a nada o meu prazer e a minha responsabilidade sobre minhas relações com a vida, a sociedade e a natureza. Ainda assim reconheço e respeito os valores gerais de crença que promovem nas pessoas um regozijo que é inominável e intransferível. Inominável pois cada ser encontra a sua palavra única que traduz a sensação de bem estar que seus valores comportam e expressam. Intransferível pois não como repassar esta sensação a ninguém. O que sentimos e cremos, é pessoal.
E dentro de uma lógica humana completa, os deuses e deusas a serem cultuados (as), evidentemente, não serão jamais iguais, pois são construções individuais de visões, anseios, culturas e valores. Não é possível reproduzir pensamentos e desejos. No máximo, imitar.
Tentando entender o que significa a Quarta-Feira de Cinzas neste século 21, acabei por abstrair-me e deixei o pensamento voar; deu nesta crônica que, pra variar, fugiu totalmente ao escopo previsto no momento em que iniciei o rascunho. Essa a beleza da arte. Na verdade, iria apenas comentar que não conheço pessoa alguma que nos dias de hoje cumpra os sacramentos previstos para este dia de pós-carnaval. Em tempos que ficaram lá no pretérito, lembro de umas tiazinhas que ainda cumpriam esse ritual. Hoje, não mais. 
Mas é um meio feriado no calendário que todos gostamos de fruir. Até ateus.

5.3.19

Um textículo: "sub"


ontem é um dia que nunca acaba
o tempo é eterno enquanto é 
a morte aduba a vida

da série haicaos

3.3.19

Um textículo: "estrela cadente"


um hai
cai

sozinha, no meio da noite
ela observa o céu
aguarda esse pequeno fragmento
em órbita 
até entrar em contato com a atmosfera
e incendiar os olhos
e um poema
preciso
se faça

2.3.19

Um textículo: "cenas"


Fiz cafuné na nuvem. Ela espreguiçou, bocejou, virou de lado. Depois levantou-se, arrumou a cama e esticou o lençol azul.

1.3.19

Um textículo: "o conselho ocupado"


a liga nacional de poetas e poetisas
reunida ordinariamente 
nessa manhã chuvosa de verão
nessa segunda de carnaval
nessa ressaca de carnaval
nesse retiro de carnaval
delibera e decide que
- nem todo verso é de poema
- nem todo poema é poesia
- nem toda poesia é arte

a mesma comissão, de
liberando ainda ordinariamente 
faz proclamar que 
- não há poeta comum de dois gêneros
- poetas gêmeos devem ser analisados, comparados, 
escrutinados e ratificados por um conselho consultivo criado exclusivamente para este fim
- todo poeta é gênio

a subcomissão para assuntos extra
ordinários de
libera e aprova um adendo:
a partir desta data, as poetisas deverão
entrar primeiro que os poetas
no recinto morfossintático

e nada mais tendo a deliberar
o presidento do colegiado finalizou o sarau
entoando loas à musa amada
que sorria de olhos úmidos
na primeira fila

assinam essa criação, 
abcdefghijklmnopqrstuvwxyz

publique-se

photo: Council of the EU