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29.2.16

Um textículo


"CALÇA VERMELHA"
manhã de sábado
pouco sol, mormaço intenso
ouvindo cultura fm
o cravo bem temperado de bach
nada me desconcentra
nem aquela mulher empurrando o golzinho batedeira
nem o carro quebrado na via
nem o buzinaço no farol
exceto
aquela rosa
sob
sobre


(EF 27/2/16)

21.2.16

Depoimento sobre a morte de Escobar Franelas


Escobar Franelas está morto. Fui eu que o matei. 
Caído no asfalto, um filete de sangue escorre a partir de suas costas, cria uma pequena poça em volta do pescoço e escorre enfim para a sarjeta. O guarda-chuva ainda está cravado na garganta, junto ao pomo-de-adão. Seus olhos nada veem, um deles também perfurado pela ponta do guarda-chuva e o outro enegrecido pelo sangue endurecido que crestou todo o seu rosto. Sua mão estendida para o alto indica uma tentativa de dialogar no momento culminante da morte. O que ele queria? Conversar? Convencer? Fugir? Proteger-se? Nada disso foi possível. A minha ira foi terrível e sequer me lembro do que pensei naqueles momentos em que culminei todos os meus atos, minha revolta, vingança, dor e ódio. Escobar Franelas, definitivamente, está morto. E eu não me arrependo. De nada.
Serve mais um cafezinho? Faz favor... Obrigado!
Me dá um cigarro? Tá um pouco frio aqui. Obrigado.
Foi assim...
Meu nome? Meu nome é Oponente. Claro! Sim senhor. Entendi, tá certo sim senhor. Meu nome é outro, Oponente é só nome artístico. Sim, sim, entendi. Meu nome é Jr.
Posso ir embora agora?

8.2.16

Resenha - fotolivro "OcupAção Tenda Literária"





















O fotolivro OcupAção, do coletivo Tenda Literária, é um delírio xamânico, um compêndio em que cada página folheada é um poema visual que trata o olhar com delicadeza sutil. 
Coletivo cultural sem endereço fixo e voltado para as expressões da linguagem, o Tenda é uma tribo cujo nomadismo faz com que os saraus organizados pela trupe tenha sempre um ineditismo avassalador. Seja numa praça ou escola, na rua ou outro palco qualquer, a surpresa é o elemento que substancializa as ações que o grupo se propõe a fazer. As pessoas, na sanha febril sempre atrás do "ôro de tolo", de repente se vê diante  de uma galera multicolorida, informal, sorridente, que transforma a palavra em bálsamo, o gesto em mel, e coloca o público todo fora do eixo comum dos dias. Assistir a uma apresentação do Tenda é ficar chocado com a realidade transfigurada pelo carinho primoroso e a beleza calorosa da poesia.
É disso que trata o livro que eles publicaram, através do programa VAI, da Secretaria de Cultura do município de São Paulo. Cada foto ali reproduzida mostra a transcendência do artista enquanto agente transformador da realidade. Mostra a arquitetura dos rostos desfigurada pela mudança mágica da palavra. Pra exemplificar, na página 13 temos um um senhor sentado, mãos cruzadas sobre os joelhos, os olhos nublados numa meditação longínqua, como a beber em haustos aquilo que está sendo proferido pelo Ruivo Lopes em primeiro plano, desfocado, microfone na mão, falando algo ou declamando algum texto. Não posso afirmar o que o poeta-educador está dizendo, mas deduzo que a atenção devota do homem ao fundo é um reflexo da carga imagética trazida pelas palavras auspiciosas que estavam sendo ditas pelo interlocutor à frente. 
Só mais um exemplo: a foto na quarta capa do livro, que traduz a tensão gerada pelo encontro daqueles que se propõem a fazer e pensar fora da redoma institucional: o grupo reunido sem maiores alardes para a degustação artística (a primeira capa é o complemento da imagem de trás), e uma viatura da polícia, (desnecessariamente) ao lado, alerta com seus giroflex acesos indicando o ciúme/inveja, roubando com suas luzes atabalhoadas a atenção que só o arte deveria ter, no clicar da objetiva. 
Olhar cada foto do livro (feitas por Célio Sales, com o subsídio generoso de Renata Xavier e Jorge Neto), é encontrar alguns dos vários sentidos da vida. Uns colecionam ouro, outros colecionam inimigos, mas tem gente que coleciona belezas. Não as midiáticas e sim aquelas que só puderam ser capturadas no instante exato do clique. 
Contando com o apêndice de textos esclarecedores de Sacolinha, Edgar Izarelli, Lika Rosa, Daniel Marques, Rafael Carnevalli, Débora Garcia e Maria isabel Oliveira, o livro apresenta três seções: Ocupa Pessoas, com registro das expressões individualizadas no momento sublime da catarse artística; Ocupa Espaço, que coloca em relevo as ações nos diversos territórios por onde o Tenda circulou e o Ocupa Ideias, cuja ênfase está na composição dos múltiplos signos que contextualizam o fazer-em-si, processo que sintetiza a ideia de ocupação e a congregação coletiva. 
As diversas simbologias que compõem o imaginário daquilo que é chamado periferia, traduzido em outras leituras por marginal, subúrbio, "fora do eixo", é um mundo ainda não descoberto pela "mass media", apesar do exotismo do tratamento intermitente dos últimos tempos. Ainda que a produção de bens culturais fora da ordem oficialesca não cesse nunca em sua fábrica repleta de experiências exitosas (que depois são fatalmente apropriadas por uma indústria cultural que traga e regurgita tudo o que se aproxima de seus tentáculos), o movimento de resistência desse caldeirão complexo e múltiplo chamado periferia, porém, dá tônus e fortifica a luta de protagonistas que fogem ao lugar-comum da hegemonia cultural e procuram lugar ao sol no diverso e no heterogêneo. 
É disso que o livro OcupAção, do Tenda Literária, trata! 
Frua-o! 

Mais sobre o coletivo Tenda Literária:
https://www.facebook.com/profile.php?id=122977937836780&fref=ts

(Fotos: arquivo Facebook Tenda Literária)

4.2.16

Resenha - livro "Nelson Triunfo - Do sertão ao hip-hop" (Gilberto Yoshinaga)

Foto: divulgação

Foto: arquivo Guilherme Junkes


Um dos grandes livros que li ainda em 2015 foi, sem dúvida, Nelson Triunfo - Do Sertão ao Hip-Hop”, do jornalista Gilberto Yoshinaga, lançado um ano antes pelos selo Shuriken Produções e LiteraRua. A obra caudalosa - 366 páginas de um texto articulado e fluido - percorre toda a vida desta personagem lendário do movimento hip-hop e da cultura black brasileira. Nascido em Pernambuco na cidade de Triunfo - que batiza o seu sobrenome artístico - Nelsão morou no Rio de Janeiro (ainda criança), Bahia e Brasília, antes de se estabelecer em São Paulo, na região da Penha. Foi em Paulo Afonso (BA), aliás, que ele, recém-saído da adolescência e já morando longe dos pais, começou a praticar duas atividades que se tornariam fundamentais em sua vida: o atletismo e a dança. 
Com o passar dos anos, porém, a dança tomaria espaço definitivo em sua rotina, tornou-se a maneira dele se expressar e até parte de sua sustentação financeira. Movimentando seu corpo fino e comprido de maneira frenética e avassaladora (que seus amigos chamavam de “troncho”, uma fusão de ritmos pop trazidos pelo cinema, tv e rádio, misturada ao caldeirão de tradições populares nordestinas), Nelson Triunfo ajudou a definir as bases do funk e do soul praticado no Brasil na década de 1970. Ainda na Bahia formou um grupo, Os Invertebrados. Depois de um período de peregrinações pelos bailes do Rio de Janeiro (mas morando em Brasília), partiu para Sampa em definitivo, onde decidiu que não voltaria ao emprego-com-horário-e-carteira-assinada, mas iria se dedicar-se com empenho à prática da dança.
Passou a frequentar programas de auditório da tv e a apresentar-se nos grandes bailes black, percorrendo o circuito de toda a cidade, além da Grande SP, outros municípios do interior, outros estados e países. Criou nessa época dois dos grupos de dança mais importantes da cena jovem de São Paulo: o Black Soul Brothers e algum tempo depois o Funk & Cia. Com o último grupo, Triunfo gravaria em 1990 um discreto disco homônimo. O enredo coeso da obra traça um perfil do Homem-Árvore (um dos vários nomes com que Triunfo foi batizado ao longo da carreira, por conta de sua enorme e famosa cabeleira), enfocando suas relações familiares, a dedicação à arte como linguagem norteadora da educação, os projetos sociais nos quais se envolveu, os primórdios da criação  da Casa do Hip-Hop, em Diadema, SP.
O relato de Yoshinaga vai além da biografia de Triunfo, e fala da cena cultural negra brasileira. Aborda também diversas questões políticos-sociais, como a truculência policial que infinitas vezes abordaram e prenderam os dançarinos por vadiagem e outros eufemismos, apenas porque estavam dançando nas ruas e praças. Faz também uma panorâmica dos movimentos de resistência marginalizados na periferia, desde os bailes black na década de 70, passando pelo nascimento do movimento hip-hop brasileiro a partir dos encontros na estação São Bento do metrô nos anos 80,  e refluindo em importantes reflexões sobre a preservação da cultura popular, as relações sociais desiguais, o respeito à natureza em todas as suas variantes e a necessidade do diálogo para construir pontes.
Obra rica e extensa, Nelson Triunfo - Do sertão ao hip-hop, de Gilberto Yoshinaga, não cria mitos, mas corrobora para eternizar o humano ser, em sua beleza, complexidade e cidadania. 

Serviço:
Livro: Nelson Triunfo - Do sertão ao hip-hop
Autor: Gilberto Yoshinaga
Editora: Shuriken Produções / LiteraRua.
Ano: 2014