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31.3.22

VEM AÍ!

 




sutileza


 

a vida, definitivamente

não é para amadores

como eu


simplesmente

parece estar mais 

pra amar dores


a mente vive

de amarrar 

(e esmurrar) essas dores

de como não fazer poesia

 já faz muito tempo que venho tentando escrever uns poemas  mas sempre esbarro nestas antessalas, o medo, a preguiça, a dúvida, e o poema não acontece. esbarra, bate na trave, bate no vidro, espatifa-se, vira tudo arremedo. 

e cacos são corpos 

não são copos

27.3.22

desordem

 

o rio não pode ser reto

o riso não é reto

ritos nunca são retos

resto não são retos


toda ereção é meio torta

toda boca é um pouco torta

até a aorta desfila torta

passar à porta deixa torto


se o amor põe em desordem

por que mesmo você insiste

colocar a vida em ordem?




abraçássaro

o vento que sopra bem forte

intimida as velas

depois acalma, vira brisa, nada

diante da luz das estrelas


a sina que vem com a sorte

irrita-se ao vê-la

vira a cor, inacabada, nem disfarça

cultiva a dor, passa a sê-la


desconcertos assim são mote

lilith tornada eva

desdobrar de braços virando asas

dor que vai, impossível retê-la


o abraço, do sul ao norte

levanta, voa, leva

é ninho, é repouso e é casa

faz-se luz onde era treva


24.3.22

haiquase - 132

 - prefiro você

- e eu você!

- nossa, isso é par feito!

Cronicazica: Apodo

 


Geraldinho, Adal, Nô, Betinho e Fridão. Caduco, Zé e Pirula. Ratão, Paulinho e Luizinho. Em um exame rápido (menos de 30 segundos), recuperei no fio da memória 11 nomes com quem joguei na adolescência e juventude. Se procurar por mais um minuto, com certeza monto outro. Quer ver? Tigueis, Mulambo, Boi, Brahma, Luizão, Mechinha, Badeco, Delei, Samuca, Maninho e Juninho. O detalhe que une essa seleção de minhas afetividades? Os apelidos.

Lembro que durante alguns anos, registrei os nomes incomuns de vários times de futebol que conheci em lugares diversos. Ao mesmo tempo guardava também as alcunhas, nomes de gente que conheci, convivi, ou só ouvi ou li de passagem. Seja como for, registrei mais de 200 times de futebol. Com uma escalação de 12 nomes (o time completo mais o técnico), cheguei ao hiperbólico montante de 2400 nomes não civis. Ou mais.

Apelidos, assim como os mitos populares, a culinária, a música e as brincadeiras infantis, são dados que explicam um lugar, um tempo, um país. Através deles, conseguimos entender nuances que não são explicáveis pela formalidade científica. Os “inho” que conheci geralmente eram mais baixos que a média. Mas teve um, por exemplo, o Geraldinho, que até era razoavelmente alto, porém manco. Durante muito tempo foi goleiro (e dos bons) no Ébanus Futebol e Samba, AE Brasil e EC Jd. São Pedro. Nesse caso, desconfio que este “inho” era um eufemismo sobre a sua condição física, não exatamente de estatura. Outro exemplo: Brahma era uma zagueirão parrudo, de não perder a jogada de maneira alguma, seja parando a bola o ou adversário. Sua profissão era motorista. Adivinha qual produto ele entregava nos bares da região? Um último exemplo: pago um doce para quem adivinhar o porte físico de um zagueiro que tenha o apelido de Boi.

Faço todas essas elucubrações porque o futebol profissional (o da várzea parece que ainda não!), impôs a troca sistemática de alcunhas por nomes mais engraçados que os próprios antigos agnomes. Tiraram os “inho” e entraram os “son”: Emerson, Everson, Richarlisson, Daivison, Keirrison… Aos poucos, saem de cena as citações físicas (Alemão, Nego, Perninha, Vareta), por nomes duplos. O caso recente mais emblemático aconteceu há duas semanas quando o jovem centroavante do Palmeiras deixou de ser Papagaio para ser mais um Rafael Elias.

Assim como os estádios estão se tornando arenas e os clubes tradicionais passaram a ser menores que seus patrocinadores nas camisetas, os nomes compostos infestaram, tomam conta das escalações. E os locutores – acostumados a Pelé, Zico, Falcão, Garrincha e Chulapa – que atualizem formas e dicções para transmitir os jogos com a mesma rapidez embaralhada e o dobro de nomes.


Em, tempo: tentei fazer uma lista de todos os apelidos que já tive: Gordinho, Toupeira, Banha, Pança, Capitão Gay, Boa Francineide, Cabelo, Cabeludo. Teve mais, mas se perderam no deserto das lembranças.

Aricy Curvello e o retorno eterno do eterno retorno

 Aricy Curvello foi o primeiro uberlandense que conheci. Dotado de uma rara capacidade de utilizar a palavra como arma, escudo, horta e jardim, desde que nos conhecemos percebi que aprenderia muito sobre a confecção poética com ele. Poeta sensível e arguto, tradutor e ensaísta, Aricy se revelava ourives, escultor e arquiteto da língua. Ostentava com seu silêncio a sabedoria dos grandes mestres, sem afetação ou falsa modéstia. Era didático e até paciente para apontar equívocos em meus percursos poéticos, sem jamais deixar que eu desanimasse no meu intento. Citava contradições mas indicava caminhos.

Sua produção poética de mais 40 anos pode parecer pequena quando vemos apenas 5 livros lançados (“Os dias selvagens te ensinam” (1978), “Vida fu(n)dida” (1982), “Mais que os nome do nada” (1986), “Uilcon Pereira: no coração dos boatos” (2000), “50 poemas escolhidos pelo autor” (2008). Contabilizando uma extensa participação em coletâneas e antologias no Brasil e exterior, o poeta de Uberlândia (que, depois de rodar o Brasil e o exterior, escolheu Serra, na costa praiana do Espírito Santo para viver), era um leitor sensível, dedicado e concentrado. Parecia um asceta mas na verdade era um operário das letras.

Foi ele quem me apresentou Hélvio Lima, artista visual arrebatador, nascido e vivendo até hoje na mesma encantadora Uberlândia. A terra gira (e, em tempos de terraplanismo, é sempre bom lembrar que a terra é redonda, portanto, roda!), Hélvio, que também é poeta e editor, se tornaria um irmão, mentor e guia deste degustador das iguarias da arte. Tanto que a primeira exposição que organizei em minha vida, em 2011 no espaço cultural A Casa Amarela, em São Miguel Paulista, foi com os postais que ele pintou e depois imprimiu, todos baseados em versos esparsos do Aricy. 


Com o tempo, a intransigência política e a crítica enfática a qualquer comportamento à esquerda, foi transformando Curvelo num homem de trato difícil. Por conta dessa dificuldade de diálogo, diminuí drasticamente a troca de correspondências (cartas, e-mails e redes sociais virtuais). Me afastei dele e, segundo percebi, ele de muitos. E continuamos nos correspondendo, ainda que cada vez mais esparsamente. Mesmo assim, ele continuava (continua) sendo um farol para este aprendiz de feiticeiro. Tanto que aguardava ansioso o seu novo livro, Menos Que os Nomes de Tudo, prometido há anos, quando fiquei sabendo, no início de 2018, que Aricy Curvelo falecera, após um período doente e longe da família e dos amigos. O comportamento irascível tinha afastado muitas das pessoas próximas. 


O motivo dessa confissão, na verdade, é que isso fez com que a minha relação com Hélvio (e sua linda família; sua musa, Adélia, é uma escultora refinadíssima; e sua filha, Isabela, uma fotógrafa muito sensível), se ampliasse a tal ponto que logo depois o movimento das estrelas permitiu-me visitá-los em seu ateliê, no Fundinho, bairro histórico de Uberlândia, para a produção de um filme sobre os trabalhos do trio.


O rio da vida seguiu seu curso e agora, na semana passada, um pacote pesado e sortido chegou-me às mãos através do Correio. O endereço do remetente indicava que vinha fartura “das boa” la´do Triângulo Mineiro. E a abertura do envelope  fez com que eu não pudesse conter um grito de espanto e entusiasmo. Dentro, entre tantos mimos mineiros, uma versão fac-similar de “Os dias selvagens te ensinam”, que procurei esses anos todos e não encontrava nem em sebos.


Como dizem os mestres de várias latitudes, longitudes e placitudes, a arte é o que permite que a vida seja mais respirável, mesmo em tempos de pandemia. Gratidão, universo! Gratidão, família Lima! Tim-tim.


Aricy Curvelo “assina” duas salas, com obras raras que ele juntou, catalogou e doou: uma na biblioteca da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) (https://www.bibliotecas.ufu.br/colecoes-especiais/colecao-especial-aricy-curvello) e outra na Biblioteca Nacional de Brasília  (BNB) (http://www.bnb.df.gov.br/sophia/index.html)


E para quem a curiosidade assanhou, uma ótima introdução ao seu perfil está descrita em:

http://www.antoniomiranda.com.br/Iberoamerica/brasil/aricy_curvello.html

18.3.22

Genival Lacerda e os dulcíssimos olhos tristes de D. Magnólia

 Da primeira casa onde morei lembro que ficava no alto de uma rua, era de esquina e tinha três árvores: um sabugueiro, uma mangueira e uma goiabeira que nunca deu frutos. Quando tive hepatite, com cinco anos, fiquei vários dias preso à cama, deitado, sem poder me levantar. Daqueles dias terríveis, lembro dos banhos e chás feitos com picão, a comida adocicada (feijão doce foi a pior iguaria que comi em toda a minha vida), e dos doces que a minha mãe me comprava, orientada por uma legião de especialistas, desde o seu Paulo, farmacêutico, até a D. Rosa, D. Irma e D. Basília. Dona Pedra não, pois minha mãe pouco falava com ela, até hoje não sei quais as razões.

Foi dali daquele quintal que em 29 de maio de 1975, dia em que nasceu o meu irmão caçula, vi várias viaturas do corpo de bombeiros contornando a “estrada do rio”, indo em direção da estação de Guaianases. Logo alguém que subia a enorme ladeira de terra batida, deu a informação que a vila toda queria saber: um caminhão sem freio tinha descido a rua da Telesp e entrado com tudo na estação de trem. Resultado: além dos feridos, 9 pessoas e 2 gatos, todos mortos.

Uns tempos depois, minha mãe, que convencia fácil meu pai a seguir seu nomadismo em busca de “morar em lugares melhores”, comprou o terreno ao lado, que era um pouco maior onde morávamos. Mas não tinha árvores. Lá ela construiu um barraco e, para comprar outro terreno contíguo com este segundo, e que dava na avenida principal (seu sonho de consumo), vendeu a primeira.

Quem comprou a casa da esquina foi o seu Geraldo, que era motorista da Samar, falava alto e gesticulando muito e desfilava todo garboso com seu uniforme, uma gravata escura sobre a camisa alva, calça de tergal passada milimetricamente e sapatos e meias pretas. Ele sempre estava viajando, mas em casa, gostava de colocar as caixas de som no quintal e ouvir música alta. Foi por ele que ouvi Severina Xique-Xique pela primeira vez. Nunca mais esqueci daquela música melosa, quente, grudenta, até porque minha mãe (crente e sisuda), se lamentava muito por ter vendido a casa para “um homem safado que vivia ouvindo essas músicas indecentes”. Nem parece que é casado, asseverava ela. Devia respeitar mais a sua senhora, a dona Magnólia, esbravejava por fim.

A D. Magnólia, tal qual a flor que lhe empresta o nome, era o contrário do marido em tudo. Simples, silenciosa, quieta, tímida, reunia todos os predicados elogiosos que as vizinhas podiam ofertar. Dona de uns olhos claros (hoje não sei se azuis ou verdes), sei que estavam sempre úmidos. Eu nunca soube quais as dores ou mistérios faziam com que olhos tão cristalinos ganhassem contornos de magenta e mesmo a encontrando décadas depois, envelhecida e curvada sob o peso da idade, continuava com os mesmos tristes, tímidos e dulcíssimos olhos.

Saber da morte prematura de Genival Lacerda (prematura sim, apesar dos 89 anos, pois o coronavírus – assim como todas as fatalidades e acidentes – abrevia vidas “fora do combinado”), abriu uma tampa aqui na memória de minhas infâncias.

E se é verdade que as músicas ouvidas nesse período entre a infância e a juventude nunca serão sobrepujadas na afetividade das lembranças, hoje uma prova fugaz dessa assertiva espocou aqui dentro. E se depois esqueci Genival Lacerda, assim como a d. Magnólia, estava num arquivo morto aqui, esta nota fúnebre reconstruiu todo um castelo escondido nas névoas do tempo há quase cinquenta anos. A notícia da morte de um ressuscitou ambos em algum lugar de minhas sensações.

13.3.22

Cronicazica - "A cultura, ou a beleza da autofagia"

O esporte, sendo uma prática cultural inerente a todo tempo e lugar, encontrou na tecnologia uma forma de tornar-se mais que rito ou guerra civilizada. Cada competição, se antes colocava oponentes diante de uma dificuldade real e presente – o embate com o adversário – com a fotografia e a imagem em movimento (cinema e televisão), permitiu que os feitos heroicos, a plasticidade de determinados gestos e as lágrimas da derrota, tudo ficasse eternizado pelo registro, as histórias e memórias agora ressignificadas e reeternizadas a cada nova exposição e contexto.

Neste aspecto, creio que a fotografia leva uma vantagem peculiar sobre a linguagem audiovisual. Pois sendo o registro de um único instante, requer mais imaginação de quem faz sua “leitura”, ao mesmo tempo que impele o indivíduo à tergiversação, a eternamente recriar o instante anterior e o posterior à imagem congelada. Olhá-la é sempre recontextualizar de forma diferente o ambiente, a atmosfera e o tempo em que foi clicada. A fotografia é a captação de um intangível e vertiginoso “frame” (a menor partícula do tempo visual). Uma foto, enquanto registro desta fugacidade, só é reproduzível enquanto produto de uma lógica técnica. E tal como Heráclito de Éfeso em sua dissertação sobre não nos banharmos duas vezes no mesmo rio, também não fazemos a mesma foto duas vezes. No máximo, a reproduzimos.

O encontro da fotografia com o esporte, enriqueceu a ambos. Se a ela foi designado um mar de novas significâncias e a beleza da urgência , a ele foi dado o direito de presentificar-se no futuro através da permanência visual, cultuado além da memória afetiva. A fotografia torna-se agente diante da objetificação natural que há no esporte, ao passo que este , enquanto protagonista, tem seu legado documentado para o futuro. Entre estes dois mundos, a beleza enquanto arte, a arte enquanto beleza, justapostas, assimétricas, amalgamadas.

A imagem da ginasta/poeta brasileira Rebeca Andrade, “voando” na Olimpíada de Tóquio em uma de suas apresentações, faz do olhar do fotógrafo/poeta Dylan Martinez, o encontro inefável que em nós vira vertigem, espanto, riso, lágrima. Em todas essas sensações, uma certeza: o prazer da extasia, que é o que realmente importa, seja na fruição do esporte ou da arte.