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24.1.16

Uma cronicazica: "Tango, bolero, futebol"



Foi meu amigo Isidro que, entre um copo de cerveja e uma salinas legítima, iniciou essa discussão. Todos nós ali reunidos participamos – exceto o Dico, que estava sóbrio para raciocinar mas bêbado demais para articular uma palavra completa – e eu, que não tenho preparo ou talento para sustentar na lábia discussões complexas, tive que vir aqui, escrever para defender minha tese. Nesse aspecto, levo vantagem, pois o que foi discutido lá no bar virou fumaça de cigarro barato, mijo no bidê sujo e acho que até já caiu no esquecimento geral numa hora dessa. Aqui não, fica registrado em algum lugar do mundo, e outras gentes e outras épocas poderão conferir a verborragia malsã desse escriba.
Bem, sem mais delongas vamos ao que nos interessa e nos une nesse momento: quem gosta de futebol como eu, como eles, sempre enfrenta uma acalorada discussão que está na tv mas também no balcão do bar (prefiro sempre o bar, ambiente muito mais adequado para o exercício retórico sobre essa nobre arte feita por 22 jogadores, uma esfera redonda, três homens sacrossantos vestidos de preto e um punhado de gente animalizada em volta). Afinal, a pergunta que tem gerado apostas, mortes, juras e outras tragédias é: quem é melhor (ou mais decisivo) para a Argentina? O histriônico Diego Armando Maradona ou o híbrido Lionel Messi?
Maradona é um trágico, um enfant terrible, fanfarrão, Coringa roubando a cena no filme do Batman, artista decisivo e definitivo. Messi é liso, quieto, paradisíaco, Mona Lisa incólume que desfila no Camp Nou com a mesma sobriedade com que poderia ser cultuado no Louvre.
Maradona teve tudo e deu tudo o que tinha para uma Argentina sedenta de um novo Gardel, um Borges, ou uma Evita inédita. É soberbo e insolente como um tango. Lionel, seu complemento e seu contrário, tem tudo (talvez mais que Diego Armando), mas ainda não entregou ao seu país nem um terço do que Zeus lhe deu. Seu bolero é uma música plástica, cool jazz que toca nas veias do nosso corpo como um violino inebriante de Perlman. O primeiro é espirituoso, o segundo é espiritual.
Maradona é fatal. Messi, imortal. O primeiro é vertical, o outro, horizontal. Lionel é Hamlet, Diego é D.Quixote. Um é Machado, outro é Rosa. Um é Playboy, outro é Brazil. Mimese. Catarse.
Ambos foram condenados pelos deuses do Olimpo a entrarem no enredo do panis et circensis e promovem o espetáculo que se nutre ao redor do mundo com uma beleza peculiar, indevassável, inconsequente e bizarra.
Nós, aqui, adoradores afoitos do Rei, do anjo de pernas tortas, do doutor magrão, ainda regurgitando torresmo, cerveja de milho transgênico, ainda crendo que Zeus é brasileiro, ainda embolando e embolorando as palavras no balcão vadio, ainda assim, nesse momento de adoração ao sublime momento do gol, saudamos assim esses artistas-inimigos da mátria: olé! E obrigado por tornar a vida menos sensata e mais bonita.

19.1.16

Resenha - livro "Peripécias de minha infância" (Sacolinha)

A obra de Sacolinha (foto divulgação)

Foto: arquivo de Luka Magalhães - Facebook

Alguns livros de Sacolinha, com Peripécias à frente (foto divulgação)

Quem acompanha o fenômeno literário brasileiro do início do século XXI que é chamado de Literatura Marginal, com certeza já ouviu o nome do escritor Sacolinha. Autor de várias obras icônicas como Graduado em Marginalidade e Estação Terminal, Sacolinha desfruta hoje de um reconhecimento que veio rápido, pois célere foi a (ótima) recepção aos seus textos desde o início, colocando em relevo um autor sensível e perspicaz, mas também engajado, que busca na arte a transformação social. 
Nesta obra que tento resenhar aqui, “Peripécias de minha infância”, o autor faz-se valer de um alter-ego, Artur, para contar reminiscências de suas vivências, entre a infância e o início da juventude, no bairro Cidade Líder, na região de Itaquera, zona leste da capital de São Paulo. O livro tanto pode ser entendido como um conto de fadas (sem o glacê hoje intragável do “era uma vez” e “foram felizes para sempre)”, um romance infanto-juvenil, uma crônica longa ou memorial autobiográfico disfarçado de peça ficcional. Não importa, o que ele traz de belo é o lirismo das lembranças que retinem imaculadas na cabeça nostálgica de Artur. Ou Sacolinha? Muito provável que de ambos.
O jovem herói conta sem firulas a felicidade que foi viver com a avó compreensiva depois dos duros anos sob a tutela de uma mãe autoritária. Sem titubear, cita as inúmeras vantagens de morar com alguém que lhe dá mais carinho e atenção. Com os novos amigos que conquista (Iti, Casquinha, Sukrilhos, Celão, Cueca, Borel, Max, Cebola, Rafinha), constitui uma turma animada e festeira. A isso se somam as farras típicas da criança em desenvolvimento. Que o digam Gargamel, dono da goiabeira mais esplendorosa do lugar, ou seu Doca da padaria, que vendia o pudim mais desejado do mundo, que padecem na mão da gurizada. As brincadeiras, os risos, os machucados, a alegria contagiante, as sacanagens entre amigos, tudo caminha junto, no processo de formação que aos poucos vai conduzindo os jovens na direção das responsabilidades surgidas com o passar da idade.
Sacolinha  não procura psicologizar os personagens, assim como foge do aprofundamento de algumas questões pertinentes à puberdade, como as primeiras manifestações da sexualidade, tampouco esquadrinha sociologicamente o ambiente. O que ele faz é contar uma boa história, sem enunciados teóricos, apenas retratando o espaço e o tempo, como os vividos pela gurizada. Faz gol de letra. Aliás, como sempre.


Serviço
Livro: Peripécias de minha infância
Autor: Sacolinha
Ilustrações: Betto
Editora: Nankin Editorial
Ano: 2010
Projeto contemplado pela FUNARTE através do edital Bolsa Funarte de Criação Literária

Foto: arquivo de Sheila Ferreira - Facebook

11.1.16

Resenha - livro "Filho da Preta!" (Léo Nogueira)





A novela “Filho da Preta!”, de Léo Nogueira, é desconcertante do início ao fim. No dia em que  faz 50 anos, Isidoro, o personagem-narrador, resolve contar a sua biografia. E já no primeiro parágrafo, ele informa que sua filha está morta no banheiro: “quando dei por mim, ela tava lá, mortinha da silva.” Assim, friamente, somos conduzidos ao enredo que traduz as ações e os pensamentos de um ser cru e asqueroso. Os relatos de Isidoro sintetizam o animal humano que ele é e, ao fnal das contas, no fundo todos somos, uns menos, outros mais.
Com o desdobrar das páginas, a história vai se tornando mais repugnante e paradoxalmente mais plausível, conforme notamos que, apesar do asco e da frieza, o que temos linha a linha é um homem que aos olhos de uma sociedade padronizada, nos aparece um indivíduo normal. Não fosse o seu depoimento em primeira pessoa, carregado nas tintas das descrições que permitem visualizar a sua decrepitude interior, seu relato se assemelharia às milhares de situações que vemos sem verniz todos os dias. 
Travestido de homem simples, cumpridor de suas obrigações civis e sociais, Isidoro tem comportamento natural, profundamente arraigado ao senso comum. Exibe com orgulho a sua biografia: ter carteira assinada de motorista profissional e um desempenho satisfatório com as mulheres estão entre os atributos que cita com satisfação. Nada, porém, traduz melhor a pequenez do seu raciocínio do que os preconceitos que são como tatuagens. Este fato é determinante, pois, apesar de se definir como branco, ele é filho de mãe negra. Daí a devoção à memória do pai, de quem herdou a cor de seu orgulho: “E eu só queria um menino homem. E branco. Branco que nem eu, preu dá´ pra ele a mesma categoria do nome meu e do meu pai. Isidoro.” (p. 11) e a maneira quase histérica com que lida com as questões de cor: “Uma vez fui de serviço para Campos do Jordão. Eita cidadezona bonita! Se eu fosse rico, era lá de que eu ia morar. Até a mulherada lá é mais bonita. Dificilmente a gente vê um preto e, quando vê, é preto rico, talvez jogador de futebol ou cantor de pagode. De maneira que já não parece nem mais de ser preto, de tão rico.” (p. 14). 
Nas memórias do narrador, vão se sucedendo inúmeras situações bizarras com as quais lidou depois que abandonou a família e vai tentar a sorte na cidade grande: crime, mentiras, incesto, pedofilia e outras aberrações vão compondo a colcha que retalhos que ele confecciona em seu cotidiano. Em tudo, a realidade nua segue seu curso.
Confesso sem estupefação que tenho encontrado muitos isidoros por aí, com seus pensamentos mesquinhos, a sordidez diária e a imbecilidade perpetuada no gestos comezinhos e nas inocentes falas nas esquinas, filas e calçadas do cotidiano.
Ao finalizar a leitura do livro, fiquei me perguntando se valia a pena dedicar mais tempo de reflexão em cima de uma obra que me gerou tanto desconforto. Por fim ponderei que era válida uma nova leitura, até mesmo para me preparar para emitir este texto. 
Com orelha de Zeca Baleiro e apresentando uma curiosa composição gráfica, onde as páginas vão “escurecendo” conforme a história vai se desenrolando (como a retratar o túnel no qual Isidoro vai penetrando), “Filho da Preta!”, de Léo Nogueira, preenche um espaço na literatura por onde poucos se esgueiram. Ler as confissões de Isidoro nos põe frente a frente com um mundo sem as afetações cordiais que permeiam a literatice básica dos bons burgueses. Pois a obra é pra poucas cabeças e desaconselhada para estômagos frágeis. Quem a ler sem sacralidades, porém, terá uma rica oportunidade de ver as coisas como são e não sob o véu da hipocrisia.

Serviço:
livro: Filho da Preta!
autor: Léo Nogueira
Editora: Reformatório
Ano: 2015 (1ª edição)

6.1.16

Resenha - livro "Coroações - Aurora de poemas" (Débora Garcia)





Mundo, mundo vasto mundo
Se eu não fosse uma mulher
Seria uma abelha.
Mundo, mundo vasto mundo
Uma abelha sem zangão.” (“Poema das sete ferroadas”, p. 53)
O livro de estreia da poeta paulistana (ela prefere que a chame de poetisa, mas tenho um apreço especial por termos que na língua brasileira são comuns a todos os gêneros) Débora Garcia, é, antes de tudo, uma sagração da vida que lhe pulsa: “sigo rascunhando e divulgando fragmentos de mim.” (“Sina”, p. 39).
Atriz, cantora, escritora e assistente social, Débora Garcia debuta nesta obra já exibindo os dotes de sua inspirada colcha de líricas: “Sou negra / E a esperança em mim reluz como estrelas no breu / Como a lua e o sol imperam no céu.” (“Sou negra”, p. 94). Com mão segura, ela desdobra as folhas de nossa história, nos leva à ancestralidade comum, nosso porto seguro: “Nunca estive na África / Mas África sempre esteve em mim.” ( “Genealogia”, p. 85). E tira o essencial da pasárgada bandeiriana para sentenciar, com nova roupagem, que “Lá o leite não tem água oxigenada / Nem data de validade adulterada / Tudo é muito saboroso, direto da natureza / que nos presenteia, com fartura e beleza.” 
Assim, mesclando leituras profundas que também fez de Carolina Maria de Jesus, de Graciliano e Drummond, entre outras, encontrando nessas referências um ponto de inflexão com suas heranças africanas e flertando profusamente com orixás que lhe substanciam a vida, Débora Garcia resume a sua condição de artista consciente e cidadã, da história que lhe perpassa a pele, olhos e ouvidos e com a profundidade extática cuja força expressiva nos ajuda a compreender que “me faz regar com luta e esperança o imenso jardim dos ideais" (“O movimento”, p. 18).


Serviço
Livro: “Coroações - Aurora de poemas”
Autora: Débora Garcia
Ano: 2014 (1ª edição)
Edição da autora