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31.8.17

Um textículo: "hermetiando"


abra o papel de embrulho
antes, porém, 
acenda o fogo
separe os ingredientes
junte os ingredientes
pegue uma letra p
aqueça o o
unte e
coloque (pouco) sal no s
flambe i
frite a

deixe no fogo
queime-se
apague o fogo
deixe esfriar

experimente

feche o papel de embrulho
jogue no lixo
tudo que deu errado

desligue o computador

reinicie

28.8.17

Um textículo: "os eleitos"


teu problema, índio, foi esse, ter nascido índio.
o teu, negro, é ser preto.
o teu defeito, mulher, é não ter falo nem voz.
e o teu, humana gente, não se reconhecer 
na anatomia que a natureza te vestiu.

o teu problema, pobre, é trabalhar sonhando enriquecer
e o teu, ateu, e só acreditar em si

quando cada um se colocar no seu quadrado
e todos estiverem no círculo (vicioso? que seja!)
então todos estarão felizes
cada qual no seu lugar 

senhor, me salva dos brutos
senhor, salva eu das bruxas
da inquisição
do senhor!

27.8.17

Um textículo: "não à poesia, onã!"


tire suas mãos daí (da poesia)
da caneta, do teclado, da estupenda alegria

toque o sino pequenino sino de blém blém
já se deu o desatino
para tudo e vem!

25.8.17

A fonte do desejo da sabedoria

Desconheço a autoria

Um textículo: "a gaveta aberta"


algumas cenas da infância, quase adolescência:
eu, sentado no barranco, vendo os moleques
que jogavam futebol melhor que eu
a inveja me corroendo como ácido 
por não ser o delei, o baianinho ou o paulinho

ouvindo distraído, george benson, gal costa 
e gilberto gil. que meu irmão ouvia
e também led, belchior e sá e guarabira
que meu outro irmão ouvia
e mais beth carvalho, tim maia, bebeto
e kc and sunshine band
que um terceiro irmão ouvia

ouvindo os programas do zé bétio e gil gomes
que minha mãe curtia no rádio

eu deitado em cima da laje de casa ouvindo
o alto-falante do parquinho ou do circo 
que tocavam sem parar raul seixas, antônio marcos
agepê e roberto carlos

eu deitado em cima de casa pensando na dulcinéia
ou contando vantagem na rodinha de amigos
no portão de casa ou da escola

emocionado depois de defender um pênalti 
na final do campeonato de futsal

a vertigem de ver meu irmão com o joelho aberto
depois de uma queda
a primeira vez que dancei com uma garota
o primeiro beijo
a primeira transa

naqueles tempos, um comercial de tv dizia que 
o primeiro sutiã a gente nunca esquece
até hoje me lembro do conjunto dela,
calcinha preta e amarela, combinando

lembro que não fui à festa de formatura do ensino básico
e ainda agora lembro que fiquei a noite inteira acordado
odiando meus pais porque eram pobres
e não tinham grana para pagar um terno barato 
e o convite pra festa

a primeira vez que vi uma pessoa morta, a dona vilma
descansando num caixão; eu tinha seis anos
e aquele homem moreno, caído numa poça
na esquina da rua da escola, um tiro certeiro
furo seco no peito (a chuva fina que caía
desmanchando o jornal que o cobria)
justamente quando voltava da excursão ao playcenter
e eu só tinha 9, talvez 10 anos

e o meu tio e meus primos, de quem não lembro os rostos
e morreram num acidente 
quando iam passear na caverna do diabo?

e teve aquela professora do segundo ano, 
a primeira pessoa, depois da minha mãe 
e da minha avó, a me chamar de lindinho 
até hoje choro quando lembro que chorei naquele dia

ef, sampalândia, ago/2017

23.8.17

Um textículo: "pois é a"


quando poetas debruçam sobre a palavra
acredito
estão meditando 

pois é a flor
ação da cor
que nos impele a recobrir o organismo vivo

poetas vão ao ringue de lutas
esbofetear letras
à mesa de cirurgia fracionar sílabas
em laboratórios praticar mediunidades

crianças com lego

quando se debruçam sobre a palavra
creio
estão mendigando

pois não é
uma víscera exposta
a magia sem segredos
o conto sem mistérios
e crianças sem imaginação

que decretarão a sobrevida do organismo

a morte é o poema vital
não o amor

22.8.17

Resenha - livro "O rio de todas as nossas dores" (João Caetano do Nascimento)


Foto Urbanista Concreto


Um rio com o sangue frio das indiferenças

Em tantos modelos possíveis de literatura longa, temos hoje três que parecem capilares: as obras em que situações, pessoas e tempos estão concentradas na ambiência externa. Nelas, os elementos são dispostos de modo a sustentar ações, os verbos reverberam. Um bom exemplo é Érico Veríssimo, com sua alusão à amplidão dos pampas gaúchos. Outra literatura é a que elabora a construção interior, cujo maior nome na literatura brasileira é Clarice Lispector. Nessa situação, temos como matriz a interlocução monológica. Já mestre Machado é uma referência ao terceiro grupo, aquele que equilibra a capitulação interior e o tracejamento da paisagem com a mesma luminosidade.
O Rio de Todas as Nossas Dores, primeiro romance de João Caetano do Nascimento, é um livro raro, pois nasceu na intersecção entre a primeira e a terceira condição, com pequena propensão a deter-se mais na última, e conservando elementos diversos da segunda. Robusta, a obra desnuda as camadas sociais menos favorecidas dentro do jogo político-econômico, contextualizando aquilo que conhecemos como romance social. Nas linhas precisas do enredo há um estudo profundo dos estratos que sempre ficaram à margem, seja na literatura, arte ou mídia, num rótulo de indiferença ou exotismo. A pobreza descrita no livro não é plástica ou pontual, mas cruel, orgânica e dolorida, como são de fato todas as pobrezas reais. O romancista, que demorou um longo inverno (quase seis décadas) para florescer no mundo literário, ainda assim revela domínio total sobre a sua matéria-prima – a escrita – aliando a isso a consciência ampliada do indivíduo pensante. João Caetano anda de cabeça erguida no chão pedregoso onde pisa, dá voz a personagens que têm alma, corpo, dores e sonhos. Têm opinião.
O enredo do livro aborda nove dias na vida de um homem que se hospeda numa pensão sórdida de uma favela com um nome peculiar, Vila da Alegria. Seu motivo é simples: vingar o pai, desalojado e morto há 28 anos no mesmo local onde se encontra agora. Para isso, ele deixou para trás seu nome original, Vicente, para tornar-se Luís Silva, uma máquina movida pela vingança. A missão que o move faz com que seja um ator camaleônico, focado apenas no objeto de sua perseguição: o dr. Fulgêncio, dono da fábrica Papeleira, algoz de seu pai e da gente sofrida da vila. Vicente/Luís gravita em torno de pessoas com diversos matizes, expressões e significações. Suas relações vão desde o afetado Rosendo, que o indica para trabalhar na Papeleleira até o irascível ex-militar Randolfo que desconfia estar sendo seguido e ameaçado (o que revelará a exatidão dos penamentos dos loucos e desvairados). Tem também a calada e sensível Celestina, empregada da pensão; e Tiziu, o garoto que está pós-graduando nas ruas, sem pai nem mãe; indo até Alice, mulher que deixou a vida Secretária do proprietário da fábrica e aproximou-se de sindicalistas e do povo do lugar, indo inclusive morar na vila. Tornou-se, assim, inimiga de Fulgêncio. A própria fábrica de papel vira personagem, com o papel que lhe é dado pela história e as circunstâncias, tornando-a protagonista, com seus excrementos poluidores, sejam os lançados no ar ou no rio.
Diante dos imediatismos propostos pela hiperconectividade e a conseqüente superficialidade imposta pelas redes sociais, síntese de que a literatura está constantemente ameaçada pela pós-modernidade, é possível perceber que a sociedade está perdendo a capacidade de imaginar, de sonhar, de interpretar jogos mais complexos. Neste embate, é muito saudável ver que O Rio de Todas as Nossas Dores é um alento. Feito nas condições mais libertárias possíveis – o autor autopublicou a obra – assim como teve o apoio de pessoas próximas para os trabalhos de revisão, diagramação e montagem, traz no próprio título um diagnóstico lírico daquilo que de fato oferece. A sujeira que suas águas transportam, bordeando a Vila da Alegria, numa constância férrea, adquire um simbolismo pungente, quando pensamos que a vingança é um fel que o vingador carrega em seu caminho sinuoso, até expiar o sangue inimigo nas águas plácidas de um rio improvável e incompreensível, maior que todas as nossas dores.


Serviço
Título: O Rio de Todas as Nossas Dores
Autoria: João Caetano do Nascimento
Páginas: 228
1ª edição (do autor): 2017

Foto Luka Magalhães
Foto do arquivo de JCN (Facebook)

Foto Maria Cecília Quintal



15.8.17

Um textículo: "regeneração"


quero alegria
dispenso a dos comediantes pagos
quero música - muita música - 
mas não aquela do toca-discos
sim para os sons de chuva, de nós
de um presente sendo desatado
quero paz
ainda que  descarte o fetichismo
de bandeiras ou pombas brancas

quero alegria
mas nada de comediantes tristes e deprimentes
e música, concerto de gemidos
suspiros apaixonados, sussurros
em noites de amor insone
quero paz - muita paz! -
a paz que declara guerra ao marasmo
à rotina, aos bons costumes  

só a carne me interessa
a carne, com seu humor e textura
cheiro e sabor 
suas sentenças bélicas
sangue represado nas veias
espírito rutilante 
alma evanescente como éter

11.8.17

Um textículo: "sobrentendidos"


Agridoce, mais que adjetivo, é metáfora do amor. Nada, ninguém explica  o que é, mas todos reconhecem o seu gozo.

10.8.17

Um textículo: "vento"


vento
tempo de bagunçar tudo
de levantar cabelos
subir vestido
de ajudar a apertar o abraço
elevar as asas 
até você

vento
tempo em distorção
apressado atrasando
todo esse querer

tempo é brisa
vento que nunca para

9.8.17

Um textículo: "espelho"


Oi,

as metáfora sempre explicam mais, pois sempre vêm desvestidas da casca dura dos significados reais. 
Fique com um forte abraçaço, 
Eu

8.8.17

Um textículo: "solilóquios"


1
a vida desde sempre
é mais que calendário na parede
é muito mais que festa de aniversário
casamento, viagens, trabalho
família, velório, amigos
a vida também é impedimento
cassação de mandato
peça de único ato

2
pessoas passam. e carros
estradas nuvens pedras
tudo passa
o amor, lembranças, a vida toda
dentro de mim, porém
uma eternidade permanece imóvel
enquanto passo

3
todo dia a gente acorda
do sonho
e tudo é passado
e tudo é futuro
enquanto o sono
não chega

7.8.17

Um textículo: "além do ´eu te amo´"


sonho, principalmente acordado
uma cor intensa de várias cores
sonho, principalmente acordado
um calor gélido que evapora 
sonho, principalmente acordado
um frio escaldante que arrepia os poros
tudo acordado
parece sonho

6.8.17

Um textículo: "borboletras"

Original em https://www.pinterest.com/bcykwan/indoor-plants-that-wont-die/ 

risco no céu anil 
retângulo de milhões de pixels
uma centopeia alada
alarga a pupila de se olhar a mais
raro lume que rasga o véu
em tom sobre tom
cor sobre cor
ciano? chumbo? cobre?
derramamento de sons silenciosos
(toda tela é uma orquestra sinfônica
em extática inércia)  
linhas tecem fios no ineditismo renovável
da vida sempre renovada

rios laranjas de águas ocres
verdes ares sufocantes
sobretudo a cor pastel a
lentamente
eternamente
acinzentar

quando há falta de energia
ou de papel
ou de cópula
casula-se
até o próximo mininanomicro big-bang
e a expectativa do novo voo

5.8.17

Um textículo: "inventário"


a mãe de meu pai ensinava rezas
a mão de meu pai me ameaçava
a professora segurava a asa
não deixava sonhar
a polícia cercava
o hospital dava medos comprimidos
nos jornais as letras eram de sangue
suor e sêmem
às vezes nessa ordem. ou não

só o tubo da tv
os desenhos, animados ou não
e os livros
deixavam eu voar

a goiabeira do vizinho dava goiabas
a mãe dava galhos de goiabeira
no lombo do filho único
a rosa dava flor e perfume
rosa me deu o primeiro espinho
que dói até hoje

o mundo é uma bola
dizem
deus chutou na trave
dizem
só o sol é gol
dizem

falam por aí que falo demais
logo eu
falho
demais