Eu não sabia o que fazer. Olhava ao redor e procurava alguma solução para o problema em que tinha me metido, mas não via saída. Juninho dirigia rápido demais, nem dava tempo de pensar direito. Estava desesperada.
Senti o solavanco quando ele virou a curva e diminuiu a marcha e soltou um “merda” quase inaudível. Umas dez viaturas fechavam a rua. Comando dos bravos.
“Que foi?”
“Nada, esses cuzão…”
“Mas os documentos tão com problema?”
“Não, mas se me parar, vão ficar embaçando até umas hora…”
Calei e fiquei acompanhando. Fazia um calorão e aquele bando de homens com seus uniformes cinza debaixo do sol davam até uma agonia. Um deles segurava um fuzil apontado pro chão. Quando o carro se aproximou, vi que tinha os olhos de cor diferente, um meio azulado, e outro mais escuro, meio cinza meio preto. Intimidaram mais que a arma que ele apertava no peito.
O carro foi se aproximando devagarinho e nem vi que gesto o guarda do lado do Juninho fez, mas o carro seguiu devagar, até parar. Cada policial se aproximou de um lado. Vi que o dois-olhos encarou o banco de trás pelo vidro mas não disfarçou a secada em minhas coxas.
“Segue”, o outro gritou.
Juninho saiu devagar, olhando o retrovisor. Também olhei, os hômi secando a gente de longe. Quando ele ameaçou engatar a terceira, um assobio, um apito e outro farda surgiu à nossa frente, apontou a arma e gritou pra parar. Ele bufou de raiva mas já foi encostando o carro, parou junto à guia.
“Vai, os dois… desce desce desce! Vai, porra, os dois com as mãos na cabeça. Vai que a gente não tem a tarde toda. Vai, de costas, encosta no carro, sem se mexer, hein!... tem arma aí?”
“Não senhor”, o rapaz respondeu.
“E você, mocinha?”
“Também não”, respondi sem refletir.
“E droga, o que vocês têm aí?”
“Não temos nada não, senhor!”
O dois-olhos se colocou ao meu lado e outras mãos começaram a me apalpar. Olhei de lado mas ele gritou um “olha pra frente, caralho!” que me assustou. Do outro lado do carro, Juninho também estava sendo revistado. Me olhou com os olhos frios. Quase gritei pra ele que não tinha culpa daquilo tudo, que era culpa daquele carro todo infilmado, da bombeta dourada, dos cordões que ele trazia ao pescoço, da suspensão rebaixada, do Racionais no talo, do bigodinho fino que nem uma carreira, da sua cor, mas nada disso ia adiantar agora; o negócio era sofrer na fila de espera da ansiedade. E torcer, rezar, orar, mentalizar, pedir a Deus e aos orixás pra tudo acabar bem.
O talarico do policial apertou meus seios, passou a mão nas minhas coxas sem disfarçar, eu apenas torcendo pro Juninho não estar vendo aquilo com clareza, para não aumentar a angústia daquela hora. Na dúvida entre reclamar ou não com o viado que me assediava, cerrei os dentes e encarei uma nuvem distante. “Caralho, não posso chorar agora!”
Mandaram a gente se afastar do carro, agora com as mãos nas costas enquanto iam revistar o carro. Encaramos a cena com atenção, puro medo de plantarem alguma coisa. Outro pegou nossos documentos e foi para o rádio levantar nosso passado. Depois de vasculhar, um deles, o mesmo que tinha me revistado, pegou a pequena caveira pendurada no retrovisor interno.
“O que é isso?”
“Uma caveira, senhor!”
“Você é satanista, neguinho?”
“Não senhor.”
“Então porque curte uma caveira, moleque?”
“É… é que é o meu apelido…”
“Apelido o quê, seu bandidinho do caralho! Aqui é autoridade… como se chama uma autoridade? Você não sabe? Hein?”
“Sei sim, senhor.”
“Então como é mesmo o seu apelido?”
“Caveira… senhor!”
“Porra, Caveira…” O guarda estava inconformado.
O outro se aproximou com nossos documentos:
“Aí, eles não devem nada. Se não tiver nada no carro, podem ir.” Virou-se. “O carro tá limpo?”
“Parece que sim. Mas é o seguinte. Gostei desse brinquedinho. Vou ficar com ele.”
Engoli seco. Juninho apenas balbuciou:
“Tudo bem… senhor!”
Voltamos pro carro. Entramos. Juninho, rosa e verde como as cores da Mangueira, tremia como se estivesse pelado no frio. Ligou o carro engatado, que deu um salto pra frente.
O dois-olhos gritou, rindo:
“Ô branquinha, acalma teu macho aí, parece até que não tem experiência com a lei.”
“Fica calmo, amor”, balbuciei. Saímos. “Isso, Ju, devagar que acho que eles ainda estão encarando a gente.”
Uma lágrima furtiva escorreu pelo rosto de Juninho, mas não ousei falar mais nada por um bom tempo. A gente estava num nervoso só. Depois de virar a curva ele acelerou e foi se acalmando.
“Rápido, amor, vamos pra casa da minha mãe.”
“Não, vamos pra casa da minha velha. É mais perto.”
“Não, Ju. O carro não tá no seu nome? Então… e lá tem o fato de que ele fica na rua, exposto. Lá casa da minha coroa não, a gente pode guardar na garagem do meu tio, lá do lado. A gente dorme hoje lá. Depois a gente pega um Uber e vai pra sua casa, mas é bom deixar o carro uns dis escondido lá. Qualquer coisa a gente fala que tá quebrado.”
“É, você tem razão”.
Ele já tinha parado de chorar, mas o rosto estava corado. Olhava pra ele quando ele me flagrou nessa encarada e sorriu, meio sem graça.
“Caveira? De onde você tirou essa ideia, amor?”
“Sei lá, na hora foi a única ideia que me veio à cabeça, eu tava gelado.”
“E eu então? Tinha até esquecido que caveira é meio BO pra esses caras.”
“Eu também, mas acho até que, apesar do susto e do prejuízo, foi uma saída legal. Os caras acho que nunca vão se ligar do que tem dentro daquele brinquedinho.”
“Isso é verdade. Mó preju, foi o estoque de mais uma semana, mas pelo menos a gente não foi enquadrado.”
A nuvem pesada que Juninho carregava até há poucos momentos atrás estava dissipada. O som no carro corria solto e a tarde iluminada clareava as nossas ideias e os nossos vínculos. Tínhamos vários dissabores a resolver: ir pra casa da minha mãe, pedir a garagem do tio emprestada, levantar uma grana pra abastecer nosso estoque, gastar dinheiro com Uber pra ir pra casa dele. Mas nada se comparava com a sensação de liberdade que a gente experimentava, parece que a gente vinha de uma longa noite fria e que o sol estava se abrindo naquele momento.
“Caveira, meu Deus!...”, Juninho processava a sua ideia genial e eu, extasiada, já tinha esquecido a violência do assédio e a dor de tantas injustiças. Pensei em desabafar com ele mas não quis estragar aquele momento de paz. Era preciso estar bem para encarar o humor ríspido da minha mãe. Ajeitei a saia e o top, prendi os cabelos e já procurava a chave dentro da bolsa, quando ouvi o lamento:
“Caralho!”
“Que foi, amor?”
“Uma viatura aí atrás dando farol, vou parar.”
“Caramba, na frente de casa. É hoje que a minha mãe tem um troço.”
Então me lembrei de que tinha uma coisa mais importante pra contar pra ele.