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1.8.16

Arcanjo e a poesia


* Em 2013 consegui colocar em movimento uma ideia que já tinha há anos: fazer uma revista que dialogasse sobre a produção poética de São Miguel e região, que eu percebia como um celeiro desde quando cheguei ao lugar, para desenvolver projetos de literatura e vídeo. A Revista RAMO começou a acontecer a partir do momento que encontrei parceiros como Luka Magalhães, Francisco Xavier, Rogério Del e Sacha Arcanjo, figura emblemática da cultura local e que trazia a robustez da reflexão crítica aliada a um profundo sentido histórico das coisas. Junte-se a isso a noção do pertencimento e temos aí a figura ideal para "inaugurar". Ele logo aceitou a convite que fizemos para um depoimento, que está reproduzido na íntegra que saiu no nº 0. Boa degustação!

 


Sacha Arcanjo, 63 anos, cantor e compositor, também é coordenador da Oficina Cultural Luiz Gonzaga. Por conta de sua longa militância – mais de 35 anos – pela apropriação da cidadania, arte e cultura na região como manifestações intrínsecas ao viver diário, tornou-se, obviamente, um farol para onde convergem os olhos dos velhos e novos. Sacha, que também foi um dos fundadores do Movimento Popular de Arte, que foi (e é) a principal artéria dos artistas e pensantes na região de São Miguel Paulista, extremo leste da Sampalândia. Por isso mesmo, propusemos a ele que fizesse um percurso da poesia em São Miguel e repensasse o seu papel hoje, tanto em produção quanto em difusão.
 Depoimento a Escobar Franelas e Rogério Del


“É uma poesia de qualidade, muito elaborada, bem pensada, altamente inspirada, né?”



 (...) A poesia em São Miguel, é difícil de pensá-la porque ela ao mesmo tempo é local e não, porque ela é local, regional, nacional, ela é até universal, né? Porque se você pensar, por exemplo, na poesia do Akira, ela é São Miguel mas é Itaim, ela é Brasil, Japão, sabe? Ela é muito além do que se possa pensar do ponto de vista localizado. Você tenta focar algumas coisas mas a própria forma se estende, se amplia. Eu tenho dificuldade de pensar, por exemplo, a poesia de um Edvaldo Santana como sendo uma poesia sã-miguelina. Acho que ela parte de São Miguel e depois ela tem um vôo aí. Sei lá, Zulu de Arrebatá, Ceciro Cordeiro, Raberuan, Cláudio Gomes, Severino do Ramo, Ivan Néris, Gildo Passos, Claudemir Santos, Nilda Magalhães, Kátia Teixeira, Rosana Crispim, Tiago Araújo, Xavier, o próprio Escobar Franelas, entre outros – esses são os que a gente tem mais acesso, um certo conhecimento – e fica complicado pra você dizer como é que é, falar “tem uma cara assim ou assado”, né?



(...) É uma poesia de qualidade, muito elaborada, bem pensada, altamente inspirada, né? Eu vejo e sinto, quando leio, quando escuto, acho que é uma poesia muito boa. A poesia produzida em São Miguel Paulista é uma das coisas melhores que têm por aí. Conheço poetas ou grupos de outras regiões e acho que a poesia daqui é tão boa quanto todas essas produzidas hoje no Brasil, inclusive nesses tantos saraus que têm por aí.

A gente vê algumas coisas que a gente entende como dissonante, mas às vezes é do próprio autor, aquilo, um momento do autor, e a gente não pode entrar no mérito. Mas acho que a poesia de São Miguel é uma das melhores que se faz hoje em dia no mundo.

(...) Acho que todos os grupos ou todos os guetos querem dialogar uns com os outros. A gente percebe muito isso. O grupo de S. Miguel, por exemplo, tem dialogado bastante com outros tantos e tem até atraído, trazido pra cá, para o seu próprio meio outros poetas que vêm e se juntam a esse time aqui.



(...) A gente teve muitos cadernos de poesia, alguns livros,  acho que é uma das formas. E outra maneira são os poemas musicados. Porque tem letra de música e tem o poema musicado, né? No caso do Severino do Ramo, tem uma poesia dele chamada “Curumim aiçó” que um dia eu me juntei com o Raberuan e ficamos a ler e discutir, acabamos compondo uma música em cima dessa letra, dessa poesia dele. Essa poesia foi gravada no disco do MPA (em 1985), e que foi um disco que se projetou por aí. Foi uma das coisas que ajudou a promover a poesia de Severino do Ramo assim como a poesia do Akira Yamasaki, do Cláudio Gomes, do Roberto Claudino. Eram poesias que foram musicadas por mim, Raberuan, pelo Edvaldo Santana, Éder Vicente, por aí... então, um pouco isso, acho que através da música, o poeta também é difundido, pois ele escreve a poesia, alguém a musica e ela toma um corpo parecido de música, porque é um pouco isso, a gente difere quando é uma canção escrita já ali, letra e música. E você até percebe quando é uma letra de música ou uma poesia musicada. A gente vê muito aí, no caso de alguns outros compositores, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Zé Ramalho, Raimundo Fagner, do próprio Belchior, que pegava suas poesias e musicava. Ele escrevia em forma de poesia e depois metia uma música em cima, que ia acompanhando aquela métrica da poesia. A gente vê muito no Beto Guedes, no Milton Nascimento, eram poesias que eles musicaram. O Caetano Veloso, Gilberto Gil, o próprio Chico Buarque.

Então, a gente vê muito isso dentro da nossa música popular brasileira. Raul Seixas, a gente vê muito a poesia musicada, que é diferente de uma letra de música ou uma determinada música em que você escreve uma letra. Quero dizer; É uma coisa diferentes você pegar um determinado poema e musicá-lo.

Acho que é essa forma de música que divulgou um pouco também os poetas de São Miguel. E continua divulgando, além dos livros, das revistas, dos cadernos de poesia.



“nos encontros, que a gente nem chamava de sarau, porque eram encontros de beber cachaça, ou uma roda de conversa e um mostrava uma poesia, outro mostrava uma música”



Foi uma coisa muito interessante, a convivência dentro do Movimento Popular de Arte, onde originou essa característica. Surgiram os poetas dentro do movimento e havia uma afinidade, nos encontros, que a gente nem chamava de sarau, porque eram encontros de beber cachaça, ou uma roda de conversa e um mostrava uma poesia, outro mostrava uma música, e depois se conversava sobre algum outro assunto, e dali as pessoas ficavam obcecados uns pelos outro e surgiam novas formas de canções. A gente tinha o varal de poesia na Praça Popular de Arte, o músico ia lá e começava a ver e ler, de repente se encantava com uma poesia e musicava. Na nossa primeira exposição na Mostra da Capela História, em 78, foi o que aconteceu. Eu pendurei meia dúzia de poemas de linguagem mundana e o Raberuan foi e musicou quase todos, entendeu?

Eu achei uma iniciativa muito louca, a gente já fazia composição juntos, a gente criava músicas nós dois, letras nós dois, fazíamos trocas mas aquilo não tinha acontecido ainda, de estar minha poesia exposta e de repente ele se envolvendo e musicando.

Então aconteceu o contrário também. Eu falei, “puxa vida, agora eu vou também musicar poemas do Raberuan”. Aí essa coisa foi virando um pouco moda, o Akira e o Edvaldo, o Zé Afonso, como músico começou a pegar poesias de outras pessoas e musicá-las. Acredito que possa ter outros grupos vivendo esse tipo de comportamento, pois isso é quase natural. Mais recentemente, temos o exemplo do Claudemir musicando poemas do Ivan Néris, o próprio Tarcísio Hayashi musicando poemas tanto do Ivan quanto do Claudemir Santos, isso é muito interessante.

À medida que um músico bate o olho numa poesia e se identifica, ali parece que nasce uma canção, naturalmente.

(...) Não só Severino mas também Cláudio Gomes e o Akira são as três pontas de lança que se mantiveram e continuam produzindo e difundindo esse trabalho, tanto os deles dois quanto o do Severino. O Cláudio mesmo é um dos grandes divulgadores da poesia do Severino do Ramo. Acho que são os três que estão mais na linha de frente, dessa nova vivência desses sei lá quantos anos já são.

(...) Tem vários outros poetas que eu poderia citar, que a gente teve uma convivência, por exemplo a poesia de Celso de Alencar, que é um dos mais consistentes que chegou até a gente, e conviveu com a gente. De cara eu falaria do Celso. Outro que se aproximou da gente através do próprio Severino, Glauco Matoso. Outro, trazido pelo Edvaldo Santana, foi o Ademir Assunção. O Luís Avelima, ainda que seja mais como cantor, como intérprete. O que ficou dele pra mim foi mais a questão da musicalidade.



(...) Hoje a gente tem relações mais amplas. Como o sarau O Que Dizem os Umbigos, algumas pessoas lá produzindo uma poesia, a gente ouvindo a poesia deles, e o pessoal do Marginaliaria, no Jardim Helena, que se reuniam na Biblioteca Raimundo de Menezes uma vez por mês, com o sarau O Levante, um trabalho interessantíssimo

Não tenho nomes do pessoal independente, ate porque eu acho que é difícil para a pessoa independente. Até aqui, na própria Oficina, esse pessoal não tem aparecido com frequência. Sempre que aparece, é gente ligada a algum grupo, alguma iniciativa mais coletiva.

(...) Tem pessoa que você acha “que não estão, mas estão”. Por exemplo, da poesia de S. Miguel, temos o Zé Vicente lá em Santo Antonio da Platina, no Paraná, mas que tem um link com a gente. É um poeta que tá produzindo, um baita trabalho. Também temos o Éder Fersant na Bahia, lá em Salvador, numa vivência como se fosse independente, ele está ligado ao nosso foco, além de poeta é uma cara que escreve muito bem seus cordéis. Temos um elo também com o grupo de Irecê, com André Marques, Chico Leite, Moacir Eduão, Juiô do Assuruá, Silva Dias, Gury Eduão, entre outros, que é o Balaio de Gente, um grupo organizado. Em São Gabriel que tem Livia Ramaiana, Welton Gabriel. Antonio Reges, Ló, Dimas Pereira, e muitos outros também.

Então, solto é difícil. A gente não tem quase ninguém solto não.



“O que falta, na verdade é cobrança,  ocupar estes espaços, os grupos se tornarem movimento, manifestação.”



(...) Olha, eu acho que até faz, não sei colocar empecilho. Da UNICSUL, saiu um grupo, que é o grupo que o Tiago Araújo faz parte. Durante o período em que ele conviveu lá e eu também convivi na UNCISUL, a gente realizava saraus lá. Até para os “bichos”. Levei vários poetas e músicos para lá como o próprio André Marques de Irecê. Acho que tem uma abertura, um professor muito bom, o Carlos Alberto, que é poeta também, e que aguarda que apareçam pessoas procurando espaço pra mostrar este trabalho. A Casa de Cultura Antonio Marcos eu acho um pouco difícil por causa das alterações de quem cuida de lá. Pois cada um que chega tem uma idéia boa mas às vezes não tem o tempo suficiente para colocar em prática seu projeto. Aqui (na Oficina Cultural Luiz Gonzaga), a gente tem feito algumas inserções. Começamos com as Noites de Arte e Expressão, que era poesia, dança, teatro e música, que se dialogavam, que a gente tentava trazer a poesia à tona, fora outros encontros como mostras e tal. Na biblioteca eu acho que também tem espaço, inclusive eu estava falando agora há pouco do Levante, que é um sarau que acontecia lá uma vez por mês.

Eu acho que o lance é por aí. O que falta, na verdade é cobrança, ocupar estes espaços, os grupos se tornarem movimento, manifestação.



Sacha Arcanjo
fotos Joel Dias Fº


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