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22.8.17

Resenha - livro "O rio de todas as nossas dores" (João Caetano do Nascimento)


Foto Urbanista Concreto


Um rio com o sangue frio das indiferenças

Em tantos modelos possíveis de literatura longa, temos hoje três que parecem capilares: as obras em que situações, pessoas e tempos estão concentradas na ambiência externa. Nelas, os elementos são dispostos de modo a sustentar ações, os verbos reverberam. Um bom exemplo é Érico Veríssimo, com sua alusão à amplidão dos pampas gaúchos. Outra literatura é a que elabora a construção interior, cujo maior nome na literatura brasileira é Clarice Lispector. Nessa situação, temos como matriz a interlocução monológica. Já mestre Machado é uma referência ao terceiro grupo, aquele que equilibra a capitulação interior e o tracejamento da paisagem com a mesma luminosidade.
O Rio de Todas as Nossas Dores, primeiro romance de João Caetano do Nascimento, é um livro raro, pois nasceu na intersecção entre a primeira e a terceira condição, com pequena propensão a deter-se mais na última, e conservando elementos diversos da segunda. Robusta, a obra desnuda as camadas sociais menos favorecidas dentro do jogo político-econômico, contextualizando aquilo que conhecemos como romance social. Nas linhas precisas do enredo há um estudo profundo dos estratos que sempre ficaram à margem, seja na literatura, arte ou mídia, num rótulo de indiferença ou exotismo. A pobreza descrita no livro não é plástica ou pontual, mas cruel, orgânica e dolorida, como são de fato todas as pobrezas reais. O romancista, que demorou um longo inverno (quase seis décadas) para florescer no mundo literário, ainda assim revela domínio total sobre a sua matéria-prima – a escrita – aliando a isso a consciência ampliada do indivíduo pensante. João Caetano anda de cabeça erguida no chão pedregoso onde pisa, dá voz a personagens que têm alma, corpo, dores e sonhos. Têm opinião.
O enredo do livro aborda nove dias na vida de um homem que se hospeda numa pensão sórdida de uma favela com um nome peculiar, Vila da Alegria. Seu motivo é simples: vingar o pai, desalojado e morto há 28 anos no mesmo local onde se encontra agora. Para isso, ele deixou para trás seu nome original, Vicente, para tornar-se Luís Silva, uma máquina movida pela vingança. A missão que o move faz com que seja um ator camaleônico, focado apenas no objeto de sua perseguição: o dr. Fulgêncio, dono da fábrica Papeleira, algoz de seu pai e da gente sofrida da vila. Vicente/Luís gravita em torno de pessoas com diversos matizes, expressões e significações. Suas relações vão desde o afetado Rosendo, que o indica para trabalhar na Papeleleira até o irascível ex-militar Randolfo que desconfia estar sendo seguido e ameaçado (o que revelará a exatidão dos penamentos dos loucos e desvairados). Tem também a calada e sensível Celestina, empregada da pensão; e Tiziu, o garoto que está pós-graduando nas ruas, sem pai nem mãe; indo até Alice, mulher que deixou a vida Secretária do proprietário da fábrica e aproximou-se de sindicalistas e do povo do lugar, indo inclusive morar na vila. Tornou-se, assim, inimiga de Fulgêncio. A própria fábrica de papel vira personagem, com o papel que lhe é dado pela história e as circunstâncias, tornando-a protagonista, com seus excrementos poluidores, sejam os lançados no ar ou no rio.
Diante dos imediatismos propostos pela hiperconectividade e a conseqüente superficialidade imposta pelas redes sociais, síntese de que a literatura está constantemente ameaçada pela pós-modernidade, é possível perceber que a sociedade está perdendo a capacidade de imaginar, de sonhar, de interpretar jogos mais complexos. Neste embate, é muito saudável ver que O Rio de Todas as Nossas Dores é um alento. Feito nas condições mais libertárias possíveis – o autor autopublicou a obra – assim como teve o apoio de pessoas próximas para os trabalhos de revisão, diagramação e montagem, traz no próprio título um diagnóstico lírico daquilo que de fato oferece. A sujeira que suas águas transportam, bordeando a Vila da Alegria, numa constância férrea, adquire um simbolismo pungente, quando pensamos que a vingança é um fel que o vingador carrega em seu caminho sinuoso, até expiar o sangue inimigo nas águas plácidas de um rio improvável e incompreensível, maior que todas as nossas dores.


Serviço
Título: O Rio de Todas as Nossas Dores
Autoria: João Caetano do Nascimento
Páginas: 228
1ª edição (do autor): 2017

Foto Luka Magalhães
Foto do arquivo de JCN (Facebook)

Foto Maria Cecília Quintal



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