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11.10.12

Resenha literária: "Valentia" (Deborah Goldemberg)



“A história contada pelos perdedores”
 Valentia, de Deborah Gondemberg, é um livro bonito e intrigante desde a capa. Esta, é de um vermelho encarnado com um desenho sutilmente trabalhado em tom cinza para não contrastar severamente com a cor dominante. O título, vazado pelos traços, metaforiza de cara que o enredo trata de sangue. Bingo!
O romance leva-nos à Cabanagem, guerra travada pelos portugueses contra a população no norte do Brasil entre 1835 e 1840, e que permanece escondida nas brumas históricas. Déborah (que também é antropóloga) nos diz, que quando estava enfurnada no meio do nada, lutando para dissipar um pouco dessa nuvem negra na história do Brasil, foi que a história lhe surgiu. Com essa trama, urdida entre a verdade histórica e os tons romanescos e fictícios, acentuou-se ainda mais a riqueza do estudo que a autora pequisa empiricamente.
Da leitura que fiz, posso dizer que o livro conta a versão pelas palavras dos “derrotados”. A história é montada em dois planos: um, no passado, através das peripécias de Samaúma, o inquieto herói do enredo, que narra as condições em que entrou na resistência aos portugueses que estavam retomando as cidades que os revolucionários tinham dominado. No outro plano, já no presente, os descendentes do lugar comentam a herança do horror da guerra e como a história foi tantas vezes recontada pelos seus ancestrais, sobrevivendo na língua do povo. Aqui, o romance incorpora elementos não fictícios e desdobra-se pendularmente com o real. Os dois lados ganham.
Sem mais delongas, vamos ao enredo: Luís Samaúma, ex-seminarista, filho de pai índio e mãe francesa, cresce com o amigo Deusdete em um internato em São Luís, no Maranhão. Por motivos diversos, ambos entram para a resistência aos legalistas, as tropas federais que, depois do assalto à Belém, lentamente penetram no interior a serviço do governo, recuperando os territórios, dizimando sem piedade as populações ribeirinhas, sejam crianças, mulheres, velhos ou jovens. Como em toda a guerra, porém, a questão mais importante não é a simples retomada da terra da mão dos incautos incendiários que ousaram sonhar com a liberdade. Às tropas do governo, interessa, sim, usurpar, violentar, fazer sangria de toda a força revolucionária, apagando qualquer chama libertária daquele povo que ousou combater os desmandos do governo. Aos soldados, importa a morte exemplar, a não indulgência, a potência da “voz oficial” que rompe qualquer laço de afetividade, memória ou história. O que deve prevalecer é a ordem institucional. A quem ousou questionar essa ordem, morte! A quem vive próximo, a mesma sorte.
É nessa luta desigual que Samaúma torna-se guerreiro-guerrilheiro, vira homem, torna-se bicho. Faz amizades, inquire, sonha, saudadeia, ri, chora, lastima, comemora. Vai amealhando amigos, personagens que ensinam a ele a arte de crescer e viver, com suas transitoriedades e controvérsias. O homem descobre que a luta renhida não é só contra o inimigo, mas às vezes contra seu próximo e até contra si mesmo, seus instintos.
A alternância temporal – recurso que a autora usa com muita propriedade – ajuda a quebrar, no leitor, a navegação in loco, que pareceria uma viagem labiríntica. A partir do momento que somos remetidos aos depoimentos do presente, temos então uma “historicidade narrativa” que nos lembra que a luta de Samaúma é no campo de ficção, é re-criação, é artesania artística, os relatos dos herdeiros da Cabanagem é que são realidade. Todavia, logo no capítulo seguinte somos levados de volta à Amazônia do século 19 e adentrados no terror da guerra novamente. Essa disposição textual, então, cumpre seu papel, fazendo com que essa duplicidade na leitura engendre um certo ineditismo narrativo, ao mesmo tempo que soma vertentes que escolas caducas definiriam como antagônicas: o depoimento real justapondo-se à ficção.
Hoje sabemos que não é assim. Que ambos – História e ficção romanesca – bebem no mesmo cântaro e processam-se pelo engenho da arte.

Goldemberg, Deborah Kietzmann. Valentia. SP: Grua. 1ª ed. 2012.

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