“A
história contada pelos perdedores”
Valentia, de Deborah Gondemberg, é um livro bonito e intrigante desde a
capa. Esta, é de um vermelho encarnado com um desenho sutilmente trabalhado em
tom cinza para não contrastar severamente com a cor dominante. O título, vazado
pelos traços, metaforiza de cara que o enredo trata de sangue. Bingo!
O romance leva-nos à Cabanagem, guerra travada pelos portugueses contra a
população no norte do Brasil entre 1835 e 1840, e que permanece escondida nas
brumas históricas. Déborah (que também é antropóloga) nos diz, que quando
estava enfurnada no meio do nada, lutando para dissipar um pouco dessa nuvem
negra na história do Brasil, foi que a história lhe surgiu. Com essa trama,
urdida entre a verdade histórica e os tons romanescos e fictícios, acentuou-se
ainda mais a riqueza do estudo que a autora pequisa empiricamente.
Da leitura que fiz, posso dizer que o livro conta a versão pelas palavras
dos “derrotados”. A história é montada em dois planos: um, no passado, através
das peripécias de Samaúma, o inquieto herói do enredo, que narra as condições
em que entrou na resistência aos portugueses que estavam retomando as cidades
que os revolucionários tinham dominado. No outro plano, já no presente, os
descendentes do lugar comentam a herança do horror da guerra e como a história
foi tantas vezes recontada pelos seus ancestrais, sobrevivendo na língua do
povo. Aqui, o romance incorpora elementos não fictícios e desdobra-se
pendularmente com o real. Os dois lados ganham.
Sem mais delongas, vamos ao enredo: Luís Samaúma, ex-seminarista, filho
de pai índio e mãe francesa, cresce com o amigo Deusdete em um internato em São Luís, no Maranhão.
Por motivos diversos, ambos entram para a resistência aos legalistas, as tropas
federais que, depois do assalto à Belém, lentamente penetram no interior a
serviço do governo, recuperando os territórios, dizimando sem piedade as
populações ribeirinhas, sejam crianças, mulheres, velhos ou jovens. Como em
toda a guerra, porém, a questão mais importante não é a simples retomada da
terra da mão dos incautos incendiários que ousaram sonhar com a liberdade. Às
tropas do governo, interessa, sim, usurpar, violentar, fazer sangria de toda a
força revolucionária, apagando qualquer chama libertária daquele povo que ousou
combater os desmandos do governo. Aos soldados, importa a morte exemplar, a não
indulgência, a potência da “voz oficial” que rompe qualquer laço de afetividade,
memória ou história. O que deve prevalecer é a ordem institucional. A quem
ousou questionar essa ordem, morte! A quem vive próximo, a mesma sorte.
É nessa luta desigual que Samaúma torna-se guerreiro-guerrilheiro, vira homem,
torna-se bicho. Faz amizades, inquire, sonha, saudadeia, ri, chora, lastima,
comemora. Vai amealhando amigos, personagens que ensinam a ele a arte de
crescer e viver, com suas transitoriedades e controvérsias. O homem descobre
que a luta renhida não é só contra o inimigo, mas às vezes contra seu próximo e
até contra si mesmo, seus instintos.
A alternância temporal – recurso que a autora usa com muita propriedade –
ajuda a quebrar, no leitor, a navegação in
loco, que pareceria uma viagem labiríntica. A partir do momento que somos
remetidos aos depoimentos do presente, temos então uma “historicidade
narrativa” que nos lembra que a luta de Samaúma é no campo de ficção, é
re-criação, é artesania artística, os relatos dos herdeiros da Cabanagem é que
são realidade. Todavia, logo no capítulo seguinte somos levados de volta à
Amazônia do século 19 e adentrados no terror da guerra novamente. Essa
disposição textual, então, cumpre seu papel, fazendo com que essa duplicidade
na leitura engendre um certo ineditismo narrativo, ao mesmo tempo que soma
vertentes que escolas caducas definiriam como antagônicas: o depoimento real
justapondo-se à ficção.
Hoje sabemos que não é assim. Que ambos – História e ficção romanesca –
bebem no mesmo cântaro e processam-se pelo engenho da arte.
Goldemberg,
Deborah Kietzmann. Valentia. SP: Grua. 1ª ed. 2012.
Mais sobre a autora: http://ressurgenciaicamiaba.blogspot.com.br/
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