Eu, Escobar,
confesso: sou o pai de Ezequiel; fiz esse obséquio a Bentinho. Em suma, eu comi
a Capitu.
Você que
enxerga a vida com olhos puros, que não se consola diante das injustiças que se
amontoam e atropelam no cotidiano, “que ´engole em seco´ com as
inverossimilhanças ficcionais diante da vida real, por favor, há de me perdoar!
Fodi o machado, agora fodo o ´de assis´. Ele que se recomponha, com sua escrita
de ressaca, com suas palavras oblíquas e dissimuladas.
O mundo atual,
todo virtual, em sua célere decadência, a priori, dirigida à digestão fácil,
não nos permite agora qualquer tipo de assomos barrocos. Convenhamos, estamos
muito mais devotados à brejeirice parnasiana, sem sequer a forma dela; e temo
hoje como inevitável a facilitação de tudo: da saúde, do discurso, do
entendimento, da moral, da jurisprudência.
Faz mais de
100 anos que Bentinho veio a lume falar o que bem entendia e ´como entendia´.
Eu não, só agora na era dos blogs, nesses tempos de efêmeros superficiais, de
superlativos banais, somente agora pude vir à luz – ó contradição! – para falar
o que penso, ´como penso´. Dizer o que fiz, ´como fiz´.
Capitu ainda
não, coitada! As mulheres já queimaram sutiãs, já votam (e voltam atrás), já
dirigem automóveis, lares e empresas (às vezes tudo ao mesmo tempo), mas ainda
comemoram essa benevolência masculina, o 8 de março. Por ora, minha querida Capitu
ainda não ganhou as tintas que merece. Espero sinceramente que não demore mais
100 anos para isso, pois ela está enfastiada, não vê a hora de pegar o
microfone e bradar o seu grito. Pois sendo mulher demais para o seu tempo, o
Brasil e o mundo não poderiam jamais entendê-la, isso é óbvio. Fizeram com ela
o que sempre fazem com as mulheres que ousam estar à frente: colocaram-na na
fogueira da inquisição. Que inquisição? Oras, a que você quiser, do
patriarcado, da escravidão, da injúria, da redução sexista, não importa;
pralguns, o que vale é colocar a mulher ´no seu devido lugar´. Ela, justamente
ela que, vamos ser sinceros!, era bem mais inteligente que meu amigo, que este
seu amigo; mais altruísta e menos démodé; mais sociável e menos sociopata; veja
bem o caldeirão quente em que se meteu. Ela merecia sorte maior, ela merecia
eu!
Pois o Bento
tinha um problema, era “afetado demais”. Não diria gay, se bem que... bem,
deixa pra lá! Temo ter que recorrer a Platão, talvez Freud, ou Lacan, para
explicar o que se passou entre Bentinho e eu.
Mas o que
vocês devem estar se perguntando é “o que é que esse filhadaputa fez, traiu a
confiança do melhor amigo, ora essa?” Não, eu não traí a confiança dele, que me
era superior ao que uma amizade entre seres que se podem devotar. Meu querido
Bentinho era um verdadeiro gentleman, um dândi fluminense, apaixonado demais
pelo personagem que a si se criou. Era um Narciso que achava feio o que não lhe
é espelho. O exercício ególatra era onde ele se regalava por completo. Ficava
entorpecido pela bebedeira de seu humor flanelante.
Se ele amava
Capitu? Claro, mas não mais que suas dúvidas, ruminadas na insegurança. Ele foi
um autêntico homem mediano, em meditação constante na faculdade de seus
meio-termos. Eu, ao contrário, sempre fui apaixonado pela exatidão sagaz, pela
ciência do lucro, cioso de vitórias e conquistas. Quando ele precisou de um
conselho, eu o dei; quando inquiriu-me sobre decisões, eu as tomei por ele;
quando ele contraía dúzias de dúvidas, era eu quem pagava, inclusive os juros.
Sendo Capitu
mulher demais e seu marido homem de menos, cheio de querelas existenciais,
acabamos por nos ajustar ao tempo, às condições inexatas das paixões febris, e
ao desejo inflexível que nos assalta quando na vida as coisas conjugam a nosso
favor: amamo-nos. Amei Sancha, amei Bento, amei Capitu; e amei Ezequiel, filho
desse desassossego plural entre pessoas vinculadas pela extrema amizade,
circunstância concordante e zelo fraterno.
Agora, seu
juiz, é preciso que se faça justiça, doa a quem doer. Por isso proponho que se
chame agora a senhora Capitolina Santiago Franelas para depoimento.
Um comentário:
Irremediavelmente irreverente e interessante; delicioso de ler e reler,sempre.
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