Em "O Silêncio do Delator", o escritor e jornalista José
Nêumanne utiliza como fio-condutor da história as músicas "Sergeant
Pepper´s Lonely Hearts Club Band", dos Beatles, e "Bringing It All
Back Home", de Bob Dylan. Como epígrafe de cada capítulo, o poema
"Inventário" de Pedro Paulo de Sena Madureira.
O enredo nos diz o seguinte: a partir de amigos e familiares que estão no
velório de João Miguel, professor morto em decorrência de um câncer, o autor
propõe um jogo sutil para testamentar as perdas e ganhos da geração da década
de 1960. Para tanto, usa um emaranhado de tempos diferentes para situar o
florescimento e crescimento da turma de amigos do morto, a Patota dos Sovacões
Solidários do Recruta Pepé - como eles autodenominavam na adolescência, e, óbvio,
uma paródica decupagem à brasileira do título do disco dos Beatles - e o que
essa época legou para o próprio grupo e às gerações futuras.
Essa "confusão" temporal estabelece num átimo um conflito
quanto àquilo que estava sendo discutido e/ou vivido no período da
pré-juventude da turma, com o tempo
presente dos mesmos personagens, numa análise aguda e fria, mas não isenta de
paixões e interpretações controversas.
O defunto apresenta uma das versões da história, em 1ª. pessoa,
dialogando com outros narradores em 3ª., num recurso intertextual quase
anedótico. O texto constrói-se em camadas diferentes e até divergentes num
vai-e-vem que não cansa, mas cria uma tensão metaestilística. Neste repuxo
entre fluxo e contrafluxo, acompanhamos fatos que se sucedem no momento do
velório, com seus arrazoados críticos; interseccionados com histórias das
experiências da turma no final da adolescência, e sua iniciação musical e
filosófica, os primeiros contatos com diversas drogas, a descoberta do sexo e o
absurdo à Camus, descortinado a partir das opções feitas no calor de momentos
únicos da vida de cada um.
José Nêumanne recupera na sua prosa, toda uma gama de tipos prosaicos
frutos de uma época que abalou todo um sistema social mofado em cinismo e
hipocrisia. Depois de acompanharmos as aventuras, desventuras, jogos amorosos e
caminhos trilhados pelo publicitário afamado e rico que quer se tornar escritor
reconhecido, a historiadora culta e mal amada, o roqueiro gay famoso, o
socialista que virou um burocrata a serviço da democracia capitalista, do
guerrilheiro que virou trapo humano bem sucedido em suas especulações na bolsa
de valores, e tantos outros tipos cotidianos; constatamos que a tal hipocrisia
e o cinismo continuam muito bem casados, apenas mudaram de roupa, discurso e
época. Verdade soberana, irrefutável e irreversível: renascem como erva
daninha, sempre em outro lugar, com um novo modus operandi, sempre que os
imaginamos sepultados.
"O Silêncio do Delator", porém, está longe de ser down,
niilista ou piegas. Vencedor do Prêmio José Ermírio de Moraes, da Academia
Brasileira de Letras, como melhor livro do ano de 2004, é todo permeado de
humor noir, principalmente nas "tiradinhas" fabulosas do morto. Dono
de um rico detalhamento do pensamento universal deixado por aqueles que
construíram esses últimos 50 anos, o livro trata(e fala) com desenvolvura de
Bergman, Elis, Chaplin; passa por Fellini, Elvis, Buñuel e - claro! - Beatles e
Bob Dylan, e muitos, muitos outros. A vida de nossos pais se recupera em
nós(como foi brilhantemente versificado por Belchior), e as velhas(e as novas)
drogas, o déjà vu existencial, a incógnita de onde situar Marx e Sartre nos
dias presentes, a sempre inevitável "revolução" jovem; tudo, tudo
mesmo, está lá, numa história sinuosa e engraçada da "Patota dos Sovacões
Solidários do Recruta Pepé", mas bem poderia ser da minha turma, ou - quem
sabe? - da sua...
*(A Girafa
Edit. - 2a. ed. 2005 - ISBN
85-8986-51-9)
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